07 Setembro 2020
Me engana que eu gosto
“Você não encontrará pela frente uma única palavra verdadeira. Nenhuma. Escrevo sobre fatos que nunca vi, nem vivi. De que nem sequer ouvi falar. Sobre o que não existe, nem jamais poderia existir. Não acreditem em mim.”
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Trecho da introdução do livro "A História Verdadeira" de Luciano de Samósata, 120-181 d.C.
Esse livro pode ser considerado o pioneiro do gênero ciência ficção. No início, o autor defende sua falsidade, como sendo mais honesta, pois assume estar mentindo. Luciano era um irreverente. Sobre a mesma ideia, em 1817 o poeta inglês Samuel Taylor Coleridge inventou a expressão "Suspensão da descrença", o melhor, a suspensão voluntaria da descrença. Consiste na vontade do espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou contraditórias. É a suspensão do julgamento em troca da premissa de entretenimento. Na ficção, isto é essencial. Precisamos nos envolver na história, fazer parte dela. É um mecanismo bem antigo, tão antigo como os contadores de histórias, continuado pela literatura e o teatro, e o cinema não podia ser diferente. É como voltar ao "faz de conta" da infância, aquele início do jogo, agora entre realizador e espectador, assim que as luzes da sala são desligadas. É uma entrega total, porque queremos ser transportados a outros mundos. E é justamente ali que começa o nosso negócio.
Mas a suspensão da descrença é frágil, e mais ainda no cinema, pela própria utilização do som e imagem como suporte. Mesmo que o conteúdo, roteiro e direção do filme sejam sólidos, aspectos técnicos como os envolvidos na qualidade da apresentação ou condições da própria sala podem estragar facilmente essa experiencia se houver algum defeito. É terrível e frustrante ver uma obra deturpada por questões técnicas. Vejamos alguns aspectos, embora alguns sejam óbvios, mas que são necessários ter em conta por parte do exibidor. A falta de um elo é suficiente para romper uma corrente.
Não basta ter os equipamentos funcionando, eles precisam estar corretamente regulados. A indústria do cinema elaborou padrões com o propósito de manter a consistência da obra desde a produção até a exibição, para que filme chegue ao espectador da forma mais próxima à que foi concebida pelos realizadores. O correto desempenho da sala depende tanto da construção como da manutenção.
A imagem precisa ter seus elementos básicos como foco, brilho e balance das cores e a sua convergência corretamente ajustados. Nos sistemas 3 D e dependendo da tecnologia escolhida, há ajustes que precisam ser verificados em forma periódica. O sistema de som precisa ter os seus componentes, como caixas e amplificadores em boas condições e estar regulados seguindo os padrões. Nas caixas por trás da tela, os drivers de alta frequência são elementos frágeis, e se falhar o som ficará abafado. Caixas de baixa frequência, ou subwoofers, manejam potencias elevadas e podem sofrer danos, gerando ruídos muito perceptíveis. E todos os canais do som devem estar presentes. Nos sistemas de som imersivo, as caixas de som surround atuam em modo individual, e a falha de uma delas cria uma área muda. Existem DCP´s de teste subjetivo (“jiffy test”) que auxiliam para encontrar rapidamente algum problema, seja na imagem ou no som. Basta rodar, observar e ouvir. Esses testes detectam falhas grosseiras. É muito recomendável planejar uma manutenção preventiva anual feita por um profissional.
O tratamento acústico também precisa ser cuidadoso, pois reverberação excessiva pode provocar dificuldades de compreensão dos diálogos e fadiga auditiva.
O ambiente e conforto da sala é também importante. Isolamento acústico é fundamental. Ruídos externos são extremamente perturbadores, e especialmente o som das salas contiguas. Esse é um aspecto que deve ser considerado já na construção das salas, pois está ligado a construção de estruturas que ficarão por trás dos revestimentos, e incluso relacionadas á própria obra civil, como lajes e muros. Os ruídos internos são também importantes, especialmente os originados pelo ar condicionado. Aqui novamente, o problema deve ser prevenido na construção da sala, pois está vinculado a forma e tamanho dos dutos, a forma da montagem dos ventiladores e compressores e o lugar escolhido para instalar. Velocidade do ar e as grelhas de insuflamento são fatores que podem gerar ruído de turbulência, e esse ruído é gerado em forma muito próximo aos espectadores, por tanto deve ser extremamente baixo. Motores de bombas devem estar bem isolados das estruturas, pois estas transmitem vibrações e ruídos para todas as salas. A janela de projeção precisa ter seu vidro instalado e fechado, pois os projetores são extremamente ruidosos.
O ambiente da sala é outro fator importante. Temperatura e humidade do ambiente devem permanecer dentro de margens razoáveis e o recinto livre de cheiros. O conforto das poltronas, a correta disposição destas para que permitam uma visão sem obstruções para todos os espectadores é outro elemento chave.
Exibição é um alto investimento, e vale a pena extrair dela o máximo proveito. Porque no final, suspender a descrença é preciso, e mais nestes tempos.
**As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem necessariamente a posição deste veículo.**

Carlos Klachquin | CBK@dolby.com
Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.