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Artigo / Panorama Jurídico

04 Novembro 2021

Um recorte sobra a regulação do VOD

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A regulação da distribuição de conteúdo é objeto de uma diversidade de normas, entre as quais a Lei 12.485, sancionada em 2011 pela presidente Dilma Rousseff, para regular os “serviços de acesso condicionado” (SeAC). – definido como um serviço de telecomunicações prestado em regime privado ao qual comumente referimo-nos por “TV por assinatura” ou “TV Paga”. O advento da Lei n. 12.485 unificou o regime regulatório aplicável às diferentes modalidades de TV por assinatura e introduziu obrigações como as cotas de conteúdo e de empacotamento, assim como limitações à propriedade cruzada entre empresas prestadoras de serviço de radiodifusão, de telecomunicações e programadoras em certas condições.

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Já ao tempo da aprovação do referido diploma, um serviço inovador começava a se instalar no Brasil: o VoD, ou “vídeo sob demanda”, prestado por meio de aplicações de internet (que não se confundem com os serviços de telecomunicações a teor do que dispõe a Lei Geral de Telecomunicações) e que tem como principal característica possibilitar aos usuários o consumo de conteúdo audiovisual no momento, local e pelo dispositivo de sua escolha – rompendo assim com o conceito de linearidade da programação que caracteriza todos os serviços de mídia que o antecederam.

Claro está que se trata de um novo serviço, com características próprias e atualmente não sujeito ao regime regulatório aplicável ao SeAC, cujo crescimento deu início a novas discussões a respeito da criação de um marco regulatório específico, em especial com relação à incidência da Condecine – uma contribuição de intervenção no domínio econômico que em linhas gerais incide sobre a exploração de obras audiovisuais no mercado nacional, e cuja arrecadação é em grande medida voltada ao fomento de atividades de produção e distribuição de obras audiovisuais nacionais. Resta evidente que, desde o princípio, a discussão a respeito da incidência ou não de Condecine sobre os serviços de VOD tem cunho não apenas fiscal ou arrecadatório, mas também adquire contornos regulatórios (à medida em que o produto de sua arrecadação financiaria o setor audiovisual nacional) e concorrencial (tendo em vista eventual assimetria fiscal entre diferentes serviços como SeAC, radiodifusão e o VOD).

Cabe destacar, neste particular, que a Condecine tal como estabelecida pela Medida Provisória n. 2.228-1, de 2001, incide dentre outras hipóteses sobre a exploração de obras audiovisuais em determinados segmentos de mercado, dentre os quais destacam-se os segmentos de salas de exibição cinematográfica, televisão aberta e televisão por assinatura. Incide também a Condecine sobre a exploração de obras audiovisuais em segmentos de mercado que atualmente possuem menor relevância comercial, tais como o vídeo doméstico e os assim definidos como “outros mercados”, um conceito vago a ser preenchido pela regulamentação da matéria.

É neste contexto que  ganha destaque, em 2011, a intenção de Manoel Rangel, presidente da ANCINE à época, de incluir o VoDna categoria de “outros mercados” da Medida Provisória e, portanto, sujeito à incidência da Condecine. . A inclusão dos serviços de VOD no conceito “outros mercados”, desde o princípio, foi objeto de grandes controvérsias em nível legal e quanto aos seus efeitos em relação ao desenvolvimento do mercado. Argumentava-se tratar-se de uma obrigação tributária introduzida por meio de instrução normativa, e portanto ausente o cumprimento do inafastável princípio da estrita legalidade em matéria tributária; ao mesmo tempo, reconhecia-se que os serviços de VOD, devido aos enormes catálogos oferecidos que lhe são característicos, não se conformaria à dinâmica da incidência de Condecine sobre os referidos “outros mercados”, nos quais a Condecine é cobrada em relação a cada título efetivamente ofertado ao usuário – o que terminaria por inviabilizar a prestação destes serviços.

A partir desse momento, as discussões a respeito da melhor maneira de categorizar e regular os serviços de vídeo sob demanda só cresceram, especialmente quanto à cobrança da Condecine. Em que pese a efetiva inclusão do VOD na categoria de “outros mercados”, instalou-se contencioso administrativo na ANCINE à primeira tentativa da agência de efetivamente cobrar o pagamento da contribuição, situação que perdurou por diversos anos e gerava situação de imensa insegurança jurídica para todos os agentes do setor.

É nesse contexto de amplo debate que, em 2020, o Congresso incluiu, na Medida Provisória 1.018/2020 (agora Lei 14.173/21), artigo impedindo que a oferta de vídeo por demanda seja abrangida no conceito de “outros mercados” por meio de norma interpretativa nos termos do art. 105 do Código Tributário Nacional.  Referido dispositivo, embora inicialmente vetado pelo Presidente Jair Bolsonaro sob a justificativa de que representaria renúncia de receita sem a devida compensação em despesas, foi posteriormente aprovado pelo Congresso Nacional por meio de derrubada do veto presidencial.

A partir do advento da Lei 14.173/2021, portanto, a Medida Provisória n. 2.228-1/2001 não pode ser interpretada no sentido de incluir-se os serviços de VOD na categoria de “outros mercados”, tornando inválidas as normas regulamentares da ANCINE que dispõem neste sentido e inviabilizando a cobrança de Condecine em relação a obras audiovisuais exploradas nos serviços de VOD.

Como se pode imaginar, referida decisão adicionou combustível às discussões em relação à regulação dos serviços de VOD, que mesmo já ocorrendo há bastante tempo devem ganhar novo impulso nos próximos anos.

 

 

Superada a discussão a respeito da incidência de Condecine sobre a exploração de obras nos serviços de VOD no atual quadro normativo, o debate agora  amplia-se para a construção de um quadro normativo específico que permita, a um só tempo, estimular o desenvolvimento destes serviços inovadores, possibilitar o crescimento dos setores de produção e distribuição de conteúdo nacional e reduzir as assimetrias fiscais e regulatórias entre os diferentes serviços de mídia.

Trata-se de um debate complexo e que por isso mesmo tem sido travado em uma miríade de foros – que incluem o Congresso Nacional, Ministério das Comunicações e Conselho Superior de Cinema – e cuja abrangência estende-se também à própria revisão da Lei do SeAC e do regime tributário aplicável aos serviços de telecomunicações.

Ao mesmo tempo, a análise do contexto internacional aponta para uma diversidade de soluções possíveis, cabendo neste momento uma reflexão cuidadosa e aprofundada destas experiências e de sua adequação às características do mercado nacional.

. Em que pese a existência de pontos de vista distintos e muitas vezes contrapostos, é necessário que as soluções a serem encontradas levem em conta também o interesse dos usuários dos diferentes serviços, o inescapável processo de inovação tecnológica, a necessidade de massificação dos serviços de acesso à internet de banda larga e assim também o posicionamento do Brasil como mercado produtor e consumidor de conteúdo audiovisual em um mundo cada vez mais globalizado.

Nicole Mendes
Nicole Mendes

Graduanda em Direito pela Universidade de São Paulo, Largo São Francisco. Atualmente é membra do Grupo de Estudos de Direito do Entretenimento (GEDE-USP) e do Nelson 121, ambos grupos de pesquisa da Universidade de São Paulo voltados ao direito do entretenimento e audiovisual. Participou de competição em arbitragem e comércio internacional, no tema da propriedade intelectual, Willem C. Vis International Commercial Arbitration Moot, em sua 28ª edição. Possui experiência em escritório de advocacia e em projetos de assistência jurídica gratuita.

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