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Artigo / Tendências & Mercado

10 Julho 2025

A sala de cinema é um espetáculo! Sósias, happenings e a estratégia da diversão

Talitha Ferraz, professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM

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Na tarde do dia 1° de dezembro de 2024, o saguão do Cinema Estação Net Rio, localizado no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, ficou lotado. O público, porém, não estava lá aglomerado devido à pré-estreia concorrida de algum filme ou por causa de algum festival. O motivo era um tanto inusitado: um concurso para escolha do sósia de Selton Mello, ator que, na época, encontrava-se em plena campanha de lançamento do premiado “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2024). A “chamada” que atraiu competidores para o concurso começou dias antes com divulgações nas redes sociais e pequenos cartazes com a foto do ator colados em postes nos arredores cinema.



A ação seguiu a série de iniciativas de ocupação cultural e formação de plateia que o Grupo Estação e o cineasta Cavi Borges já vinham (e continuam, evoé!) realizando nos ambientes do Estação Net Rio e Estação Net Botafogo, dois cinemas de rua tradicionais e resistentes que o grupo exibidor carioca mantém no pedaço inicial da Rua Voluntários da Pátria – talvez o único reduto do binômio cinefilia-boemia que restou no Rio depois do apagamento do saudoso Cinema Paissandu, no Flamengo, e do vazio trazido pela sazonalidade do Cine Odeon, no Centro.

O vencedor do concurso promovido no Cinema Estação Net Rio foi Ramon Carneiro, um rapaz negro, que, desde então, passou a ser conhecido como “o primeiro sósia do Selton Mello negro” ou “Selton Mello Caramellow”. Entre os prêmios entregues, constava um liquidificador (!), eletrodoméstico que ali virou troféu em alusão ao filme “Reflexões de um liquidificador” (2010), dirigido por Selton Mello.

Na esteira da trend de concursos de sósias de atores e personagens de produções audiovisuais (que vêm, inclusive, pululando em várias cidades do mundo desde o ano passado, a exemplo dos casos da procura por “doppelgängers” de famosos como Dev Patel, Timothée Chalamet, Jeremy Allen White etc.), para além do episódio do Cinema Estação, outra ação recente foi capaz de mobilizar o público pelo mesmo propósito.

O lugar, desta vez, foi um tradicional cinema de rua paulistano (inaugurado em 1956 como Cine Trianon), patrimônio cultural do Estado de São Paulo tombado pelo CONDEPHAAT: o bravo Cine Belas Artes, que hoje, depois tantas intempéries e ameaças de fechamento, leva o nome de Reag Belas Artes.

Um verdadeiro happening se deu no local no dia 27 de maio para a escolha de uma sósia da personagem Silene Seagal, vivida pela atriz Camila Pitanga no filme “Saneamento Básico”, comédia de crítica social de 2007 dirigida pelo fundador da Casa de Cinema de Porto Alegre, Jorge Furtado. O filme é considerado um clássico do cinema brasileiro contemporâneo e foi restaurado em 4K no âmbito do programa Sessão Vitrine Petrobras, em parceria com a Cinemateca Brasileira. O concurso de sósias da mocinha da narrativa no Cine Reag Belas Artes integrou as ações de marketing da Vitrine Filmes para o relançamento do filme em salas de cinema e contou com a presença da própria Camila Pitanga, além do diretor da obra, que participaram como jurados. O evento garantiu momentos impagáveis como sósias trajando longos vestidos vermelhos (tal como o figurino de Silene), a famosa lanterna que a personagem usa em cena e até mesmo “roubo” da coroa da premiação entre os concorrentes.

O que valeu nos dois casos acima foi a máxima de que “cinema é a maior diversão”. E é esse um ponto fundamental para reafirmarmos a capacidade que os espaços de cinemas têm de engajar o público em torno de um valor importante: o espetáculo que vai além da tela.

Cinemas são, historicamente, equipamentos urbanos que funcionam como catalisadores de variados elementos que ingressam proficuamente na produção de laços de sociabilidade, identidades e subjetividades, ou seja, num com-viver e estar-junto-com pessoas que se unem por algumas horas para vivenciar uma experiência, seja ela de ordem “estritamente” espectatorial (ver o filme) ou sociocultural (integrar um ritual, performando como membro de um corpo meio difuso e sempre imprevisível, o qual chamamos de “público”). O espetáculo, nesse sentido, é um fator importante. Nos primórdios das exibições cinematográficas em cafés, feiras, cine-teatros, circos etc. entre finais de século XIX e primeiras décadas de século XX, uma miríade de atrações também fazia parte das experiências das audiências. Com o tempo, o mercado exibidor, ao se consolidar industrialmente, foi moldando tipologias de salas de cinema que se afastaram dos “espetáculos de palco e tela”. 

Dados recentemente divulgados pela pesquisa “Hábitos Culturais 2024”, realizada pelo Itaú Cultural em parceria com o Instituto Datafolha (Disponível em: https://fundacaoitau.org.br/observatorio//biblioteca/habitos-culturais ), indicaram que entre 2.494 entrevistados de 16 a 65 anos de idade e classes sociais diversas, 32% consideram a interação social o principal fator de motivação para ir ao cinema. Outro dado interessante mostra que sessões temáticas ou nostálgicas são o grande atrativo para 10% dos entrevistados frequentarem os espaços de exibição. Isso reforça a necessidade de olharmos mais atentamente para o potencial de eventos como os concursos de sósia acima relatados no que se refere à mobilização desta vontade de estar em presença de outros em meio à experimentação de uma espécie de daydreaming memorável.

Robert C. Allen, um dos autores mais consagrados dos estudos sobre dinâmicas de cinemagoing– expressão que venho traduzindo há alguns anos como “práticas de ida ao cinema”, dentro da perspectiva brasileira da pesquisa em histórias de cinemas, inaugurada pelo pioneiro Prof. João Luiz Vieira– comenta que os cinemas são lugares sociais específicos, onde ocorre uma prática social localizada entre o ordinário do cotidiano e o extraordinário inerente à capacidade de fazer convergir trajetórias individuais múltiplas, tornando-se, assim, um evento social. O ordinário, o eventual e o memorável se abraçam, e esta é a beleza que os equipamentos de lazer cinematográfico guardam: unir a força do filme assistido ao papel agregador dos ambientes físicos do cinema.

Para além de grandes estratégias de marketing que muitas vezes se descolam do imediato da vida, alternativas simples (como um cartaz colado em um poste chamando para um concurso de sósias ou a promoção de uma noite divertida com pessoas encarnando a personagem de uma comédia brasileira) podem ser mais adotadas por distribuidores e exibidores, tendo em vista as preocupações globais atuais quanto à sobrevivência e a ocupação das salas de cinema, sobretudo, no Brasil, as de rua.

Aliado a isso, ações nos moldes dos concursos de sósias realizados no Estação NET Rio e no Reag Belas Artes deixam a lição de que uma onda de bons afetos ligados a filmes brasileiros precisa fundamentalmente da sala de cinema, onde um engajamento significativo se dá através do happening, do ordinário-eventual-memorável e de expressões de cinefilia. O vínculo de novas gerações com obras do nosso patrimônio audiovisual, a exemplo de “Saneamento básico”, ganha muito quando um público de jovens tem a chance de vivenciar, coletiva e presencialmente, essa relação.

A grande diversão do cinema ainda precisa de corpo-a-corpo, interação e “espetáculos de palco e tela” (e de um pouquinho mais de performance).

Talitha Ferraz
Talitha Ferraz

Talitha Ferraz é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, com estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa, e pós-doutorado pelo Centre for Cinema e Media Studies da Ghent University (CIMS-UGent). É professora da ESPM-Rio e do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da UFF (PPGCine-UFF). Desenvolve pesquisas sobre exibição cinematográfica, práticas dos públicos de salas de cinema e interfaces entre mídia, nostalgia e memória.

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