23 Outubro 2025
Reflexões sobre cinema e mercado: um aprendizado que vem do México
Um aprendizado que não vem de longe, mas da própria América Latina
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Nos últimos meses, participei de dois encontros internacionais que me marcaram profundamente e que, de formas diferentes, colocaram o México no centro de uma reflexão necessária sobre o nosso próprio mercado: a Film Distribution Summit e o seminário da Europa Distribution em San Sebastián. Foram espaços de troca intensa, com profissionais de diversas partes do mundo, nos quais pude observar como algumas questões que parecem particulares ao Brasil são, na verdade, parte de um cenário mais amplo — e como, ao mesmo tempo, a América Latina tem respostas e caminhos próprios que podem nos inspirar.
Na Film Distribution Summit, tive a oportunidade de moderar uma mesa com Geminiano, da Cine Caníbal, uma distribuidora mexicana que nasceu em 2011 e, em pouco mais de uma década, se tornou uma potência regional. Hoje, a empresa compra filmes para todo o continente e lança em mais de 15 países da América Central e América do Sul.
A apresentação de Geminiano foi, para mim, uma mistura de entusiasmo e incômodo. Entusiasmo porque revelou um trabalho de construção consistente de mercado; incômodo porque escancarou os gargalos estruturais do Brasil — um país de mais de 213 milhões de habitantes que, paradoxalmente, tem metade do número de salas de cinema do México.
Outro dado simbólico: enquanto o ticket médio no México é de US$ 3,00, no Brasil ele chega a US$ 7,00. Essa diferença tem implicações diretas na formação de público e na democratização do acesso.
É importante ressaltar que o México não parte de uma posição confortável. Pelo contrário: trata-se de um país que convive com uma proximidade geográfica e econômica intensa com os Estados Unidos e sofre uma forte pressão do mercado audiovisual norte-americano. Ainda assim, conseguiu construir um mercado sólido, com uma articulação eficaz entre distribuidores, exibidores e ações pontuais de apoio estatal — como no caso do filme Flow —, tornando-se hoje uma referência importante na região.
De acordo com dados da Comscore (Box Office by Country, 2024), o México arrecadou cerca do dobro da bilheteria do Brasil, mesmo com uma população menor. É claro que o número de salas influencia, mas não explica tudo. O Brasil, que durante muito tempo figurou entre os dez maiores mercados do mundo, perdeu espaço de forma significativa — inclusive dentro da própria América Latina.
Um ponto central da fala de Geminiano foi sobre o trabalho paciente e estratégico de educar os exibidores, sobretudo a Cinépolis, o segundo maior grupo exibidor do mundo. No início, a Cine Caníbal não tinha acesso privilegiado nem condições ideais; levavam os filmes “no braço”, literalmente. Era preciso explicar aos programadores que aquele título “de autor” era simplesmente um filme — e que merecia o mesmo tratamento que qualquer outro.
Essa mudança de percepção foi construída aos poucos, com persistência. A Cinépolis, e depois outros players, abraçaram a ideia de que não existem “caixinhas” fixas para os filmes, mas um ecossistema em que a diversidade pode funcionar economicamente.
Enquanto isso, no Brasil, ainda lidamos com barreiras simbólicas e práticas no diálogo com o circuito exibidor, que frequentemente reproduz a lógica da concentração: todos correm atrás dos mesmos títulos de Cannes ou das vitrines midiáticas, porque são os “mais fáceis” de trabalhar. Essa concentração foi um tema muito presente também no seminário da Europa Distribution em San Sebastián, e para mim é um dos nós centrais que precisamos desatar.
Nos debates de San Sebastián, ficou claro que exibidores e distribuidores precisam atuar como aliados estratégicos, não como atores isolados. Isso pode parecer óbvio, mas na prática está longe de acontecer. No Brasil, são raros os casos em que o exibidor aposta de verdade em um lançamento que não tenha já uma chancela internacional ou um apelo midiático garantido.
O caso do filme Flow, no México, é exemplar. Trata-se de uma animação independente que, no Brasil — um território duas vezes maior que o México e com uma forte tradição de animação —, poderia ter alcançado uma expressão muito maior. No México, Flow ultrapassou US$ 6,3 milhões em bilheteria, o equivalente a cerca de 2,1 milhões de espectadores, graças a uma articulação rara entre distribuidor, exibidor e governo, que organizou sessões públicas e mobilizou um público amplo.
Isso mostra que quando existe confiança mútua e estratégia compartilhada, é possível criar fenômenos locais sem depender das grandes majors norte-americanas. E mostra, também, que o exemplo a seguir não precisa vir da Europa ou dos Estados Unidos, mas pode vir de dentro da própria América Latina.
Outro ponto que apareceu de forma transversal nos dois eventos foi a crise global da mídia especializada em cinema. Com exceção da França, onde ainda existe uma imprensa sólida, crítica ativa e programas de TV dedicados ao cinema, a maioria dos países enfrenta um apagamento acelerado dos espaços de crítica.
No Brasil, essa crise tem um agravante: não há políticas públicas estruturadas para apoiar a crítica e a mídia independente. Papo de Cinema e Vertentes do Cinema, dois excelentes sites brasileiros, poderiam ser muito maiores se houvesse investimento estrutural na crítica e na imprensa especializada. Isso cria um ciclo vicioso: sem investimento, a cobertura se concentra nos blockbusters e nos filmes com atores globais, reforçando a concentração e diminuindo o espaço para obras independentes.
No seminário de San Sebastián, discutiu-se que sem uma crítica atuante e uma imprensa especializada, o cinema de autor perde parte essencial da sua mediação com o público. É um problema global, mas que no Brasil é agravado pela ausência de editais específicos para essa área. A Ancine e outras instituições deveriam pensar em programas voltados à crítica e à mídia, entendendo que a formação de público não se dá apenas na sala de cinema, mas também no discurso que circula em torno dos filmes.
Segundo dados da Comscore (2025), a crítica e a mídia especializada — jornais, revistas e veículos de cinema — continuam sendo o principal fator de influência para levar o público às salas. No cinema de autor e independente, essa influência chega a 35%, muito à frente das redes sociais, que variam entre 1% e 7%, e acima mesmo do trailer em sala, que representa cerca de 23%. Esses números confirmam o que os debates internacionais reiteram: a crítica ainda é a primeira ponte entre o espectador e o filme, e seu fortalecimento é essencial para a vitalidade do cinema de sala.
Outro tema delicado — e urgente — é a relação com as plataformas de VOD. A MUBI, antes da pandemia, comprava filmes internacionais de nós, distribuidores brasileiros, por valores muito baixos. Durante a pandemia, quando os distribuidores locais enfrentavam grandes dificuldades no Brasil e na América Latina, passou a adquirir grandes títulos — como Palmas de Ouro — pagando valores muito mais altos e alterando significativamente a dinâmica do mercado.
Ao mesmo tempo, há uma política cada vez mais frequente de lançar filmes diretamente no streaming, sem passar pelas salas de cinema. Um exemplo é Grand Tour, de Miguel Gomes, um filme profundamente cinematográfico que foi direto para o streaming.
Isso é preocupante porque sabemos que o cinema é — e sempre será — a grande vitrine. É ele que alavanca as vendas internacionais e o valor simbólico das obras e, sem ele, o vídeo sob demanda perde força. Os filmes chegam às plataformas e muitas vezes o público nem toma conhecimento. A lógica é a mesma de quando as locadoras estavam cheias de lançamentos: os títulos que vinham diretamente das salas de cinema eram os que se destacavam e permaneciam na memória. É uma questão de organização da informação — num ambiente saturado de dados fragmentados, os espaços que concentram atenção funcionam como holofotes, facilitando que os filmes existam socialmente. É exatamente aí que residem também a importância das salas e da mídia especializada.
Dito isso, é importante reconhecer que a MUBI também exerce um papel relevante de curadoria no mercado. Não se trata de demonizá-la, mas de pensar regras claras. O que é inaceitável é que, em um território do tamanho e importância do Brasil — um dos principais mercados para as plataformas —, ainda não exista uma regulação adequada do VOD. Essa lacuna permite que práticas desbalanceadas se consolidem e fragilizem o ecossistema local.
Por fim, há um elemento que não pode ser ignorado: estamos vivendo um momento de visibilidade internacional rara para o cinema brasileiro. Em conversas recentes com mais de cinquenta distribuidores internacionais, constatei que metade deles tinha três filmes brasileiros de destaque em catálogo: O Último Azul, de Gabriel Mascaro; O Agente Secreto, um dos títulos mais comentados e elogiados da temporada; e Ainda Estou Aqui, que será lançado na Dinamarca no fim do ano.
Esse interesse internacional precisa ser acompanhado por agilidade institucional. O Programa Estratégico Brasil, por exemplo, precisa liberar editais com mais rapidez, para que distribuidores e produtores possam agir no timing certo. Não adianta ter bons filmes circulando se a engrenagem de apoio se move devagar.
Todas essas reflexões — sobre exibição, mídia, distribuição, VOD e articulação de mercado — convergem para um ponto: o exemplo inspirador não vem de longe, mas de perto, da própria América Latina. O México mostra que é possível estruturar um mercado forte por meio de cooperação entre distribuidores, exibidores e ações estratégicas pontuais.
Para o Brasil, que ocupa um lugar estratégico globalmente e lidera blocos como os BRICS, pensar o cinema como eixo cultural e econômico é urgente. Não basta produzir bons filmes — é preciso construir, de forma coletiva, o ambiente para que eles circulem, encontrem público e façam parte de uma política cultural sólida e visionária.

Priscila Miranda do Rosário
Priscila Miranda do Rosário é distribuidora, produtora e curadora. Fundadora da Fênix Filmes, atua na difusão de cinema independente com foco em diversidade e coproduções internacionais. Participou de curadorias e júris em festivais como BIFF, Curta Cinema, Clermont-Ferrand e European Work in Progress Cologne. Em 2025, foi palestrante do World Cinema Funding na Berlinale e moderadora na Film Distribution Summit, em Hamburgo. Sua trajetória combina filosofia, artes cênicas e mercado audiovisual.
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