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16 Fevereiro 2024 | Gabryella Garcia

Estereotipação de pessoas trans diminui no audiovisual brasileiro, mas representatividade ainda é baixa

Enquanto presença em frente às telas aumenta, atuação atrás das câmeras ainda sofre com falta de políticas públicas e de editais mais inclusivos

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Kika Sena em "Paloma", filme que conta a história de uma mulher trans que sonha em se casar na igreja no sertão de Pernambuco (Foto: Divulgação)

Historicamente a representação de pessoas trans no audiovisual é colocada sob um ângulo de rejeição e sofrimento. Pessoas trans assumem papéis em que seu principal traço de personalidade é sua identidade de gênero e mulheres trans e travestis, por exemplo, são relegadas a papéis secundários ou ligados a prostituição. Essa estereotipação acaba reforçando um imaginário coletivo que relega pessoas trans às margens da sociedade, mas o cenário está mudando. 



Hoje, personagens trans passam a ser protagonistas de suas próprias histórias e, apesar das representações mais recentes não fugirem da realidade de violência e discriminação, há espaço para personagens trans também irem muito além de questões de gênero e mostrarem uma variedade de anseios e desejos, como, alías, acontece na vida de uma pessoa cis. Mas, apesar dos avanços, a representatividade nas mais variadas funções da cadeia produtiva ainda é baixa e encontra seu gargalo.

Noá Bonoba, que se identifica como mulher trans e é atriz, roteirista e Diretora de Descentralização e Pesquisas na Associação de Profissionais Trans do Audiovisual (APTA), falou ao Portal Exibidor sobre essa mudança nas narrativas.

"É importante ter consciência dos clichês e não precisa fazer uma espécie de interdição deles, mas é importante que haja letramento para a sociedade e roteiristas para entenderem que existem esses clichês que articulam discursos sobre a nossa existência e reforçam o imaginário coletivo de que nós somos todos iguais. Isso foi criado pela mídia e pelo cinema e contribui com uma máquina de necropolítica que nos mata e faz a sociedade nos enxergar de uma maneira única e estereotipada. Isso reforça um clichê no imaginário coletivo e é importante o letramento para a construção das histórias desses personagens. Temos feito reivindicações enquanto movimento e estamos ocupando espaços para reivindicar as narrativas e termos histórias contadas por nós. Precisamos diversificar e formular narrativas mais potentes, mas essa mudança existe e está acontecendo", disse.

Mas, apesar dos avanços na representação das personagens, a representatividade dentro do mercado como um todo ainda é baixa. Bartolomeu Luiz, um homem trans que é produtor-executivo e ex-presidente da APTA, além de cofundador da produtora Arruda Filmes, pontuou que o mercado audiovisual ainda é dominado por homens brancos, cisgêneros e de classes altas.

"O audiovisual não deixa de ser uma profissão elitista onde determinadas posições como direção, produção-executiva e até roteirização tenham pessoas que vieram de boas faculdades e tenham contatos ocupando essas posições. Desde 2020 o mundo passou a olhar para políticas afirmativas e pessoas trans conseguiram uma maior entrada na cadeia produtiva e, a partir de 2021, com a retomada das produções pós-pandemia, houve uma entrada maior dessas pessoas, mas não deixa de ser um mercado que ainda é elitista. O cinema comercial, em especial, tem poucas pessoas trans dentro do mercado. Não é que esses profissionais e essas histórias não existam, mas não são conhecidos. Além disso, também tem uma falta de vontade de procurar essas pessoas. O cinema independente, por outro lado, é bem rico na participação de pessoas trans. Temos o Tela Trans, por exemplo, que mapeia um grande número de projetos trans sendo feitos. O cinema independente consegue chegar a lugares que o cinema comercial não chega", destacou.

Obras cinematográficas brasileiras que jogam luz à pautas e vivências trans ainda são escassas e o cinema nacional engatinha nesse sentido. Como destacou Bartolomeu, filmes com a temática trans dificilmente chegam ao circuito comercial e produções como Valentina (Campo Cerrado Audiovisual), Madalena (Vitrine Filmes) e Paloma (Pandora Filmes) são tratados pela produção independente. A 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos principais eventos do audiovisual brasileiro, por exemplo, exibiu seis filmes com personagens trans entre os protagonistas de um total de 145 produções que foram exibidas, ou seja, apenas 4,1%. Tudo o que Você Podia Ser, inclusive, foi o único longa-metragem dentro desse recorte e mostra o último dia da travesti Aisha em Belo Horizonte antes de se mudar para São Paulo para estudar. O filme mostra a vivência de Aisha para além dos problemas de violência, com a personagem falando com suas amigas sobre viagens, carreira acadêmica, amores, saúde, dificuldade de pagar o aluguel.

Prova dessa falta de representatividade é o estudo conduzido por Noá Bonoba no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela atualmente está conduzindo uma pesquisa sobre transgeneridade e cinema, fazendo um mapeamento de longas de ficção realizados por pessoas trans e travestis na história do cinema brasileiro.

"Estamos fazendo um mapeamento que ainda é muito impreciso então não é possível afirmar com certeza, mas temos menos de dez longas realizados por pessoas trans na história do audiovisual brasileiro. O mapeamento segue sendo feito para termos uma maior precisão, mas de forma geral temos esse cenário e hoje trabalhamos para criar estratégias que revertam esse quadro da presença tímida de pessoas trans na realização. As pessoas trans não conseguem acessar os recursos e o dinheiro, e a presença em festivais e dentro das instituições ainda é tímida. Estamos caminhando para uma expansão mas a presença ainda é tímida. Precisamos reestruturar o audiovisual brasileiro e o modo como ele se constitui para essa presença de pessoas trans ser prioridade, e não dentro de uma perspectiva de inclusão apenas. A inclusão trabalha com a ideia de abertura de portas, mas os espaços não garantem a permanência de pessoas trans. A estrutura atual abre as portas mas não faz uma reforma interna para incluir pessoas trans, por isso precisamos reestruturar. A ideia de inclusão é importante, mas precisa ser expandida", afirmou ao Portal Exibidor.

Políticas públicas e editais

Devido a ocupação de espaço em frente, e também atrás das telas, a representatividade de pessoas trans no audiovisual brasileiro está mudando. Mas, para uma mudança completa do audiovisual para que pessoas trans sejam contempladas e contratadas para todas as funções da cadeia produtiva, é necessário o fomento de políticas públicas e também editais. Bartolomeu também destacou a importância de programas de espelho criativo, que no Brasil já foram realizados por Netflix e Disney, por exemplo, onde a pessoa recebe uma espécie de mentoria para impulsionar sua carreira e até mesmo liderar projetos, para que possam ocupar posições de liderança dentro da cadeia.

Em relação aos editais, Noá pontua que atualmente existe apenas uma política de cotas, mas que não é aplicada em todos os lugares da maneira correta.

"Muitas leis são burladas, como a Lei Paulo Gustavo, em que existia uma demanda para pessoas trans e não foi aplicada em todos os lugares da forma correta. Devemos monitorar as leis e os recursos, além de solicitar políticas afirmativas que possam ultrapassar as cotas. É importante lutar pelas cotas, mas também pela expansão desses percentuais e também devemos garantir que todos os editais tenham pessoas trans selecionadas, isso é uma urgência. Precisamos criar editais exclusivos em âmbito nacional para fazer esse reparo com a cinematografia trans. Esses dados da pesquisa precisam ser revertidos e é urgente a criação de um edital exclusivo e que exista a obrigatoriedade da aprovação de pessoas trans no edital. No edital Ruth de Souza de Audiovisual, do MinC, por exemplo, houve abertura para mulheres trans, mas exclusão de pessoas transmasculinas e não-binárias. Também percebemos que apesar da inscrição de mulheres trans, nenhuma foi selecionada. Existe uma questão complexa de falta de engajamento político e precisamos de cotas trans que façam projetos de pessoas trans serem selecionados dentro de uma obrigatoriedade, sem ficarem reféns de uma curadoria cisgênera", destacou.

Sobre o Edital Ruth de Souza, Bartolomeu destacou que enquanto presidente da APTA houve uma conversa com o MinC e o órgão se mostrou aberto a entender os erros cometidos. "Nosso entendimento foi de que trariam mais editais e seriam mais completos. Essas políticas afirmativas fazem bastante diferença dentro do mercado e deram a entender que esse edital específico era do governo passado", disse.

Por fim, o cofundador da Arruda Filmes também falou sobre a possibilidade - e necessidade - da internacionalização de produções brasileiras como um caminho para o aumento da representatividade trans não apenas em frente às telas, mas também atrás delas no cinema nacional. "Além de editais também precisamos de iniciativas como a da Spcine de internacionalização e cursos de roteiros. Sempre falamos da Spcine mas é um modelo a ser usado para outras regiões e a própria Spcine está criando um time para pensar em outras regiões. Nosso cinema é muito potente e sou à favor da internacionalização dos nossos filmes. Falamos muito da centralização dos estados, mas tem gente que não quer sair do lugar que está, mas quer levar seu filme para o mundo. Acredito muito na internacionalização das nossas obras".

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