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Artigo / Audiovisual

15 Setembro 2020

Amefricanidade: pulmão do audiovisual brasileiro

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A divisão mundial do mercado audiovisual, historicamente, relegou ao Brasil o papel de praça consumidora da produção estrangeira, alimentada pelo consumo em massa do conteúdo audiovisual norte-americano e as “degustações" do conteúdo audiovisual europeu, reservando proeminência para o consumo do audiovisual francês. Tal sistema de divisão internacional no mercado audiovisual globalizado evidencia a problemática, apresentada por Celso Furtado, sobre a legitimidade da apropriação do excedente gerado pelas transações internacionais, frente a titularidade do comando da crescente concentração geográfica da renda e riqueza. Exemplo disso é a dificuldade existente para que produções oriundas de mercados como os latino americanos, caribenhos, africanos e/ou asiáticos encontrem-se com a audiência brasileira.

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A condição continental de um país como o Brasil, por si, impõe ao mercado audiovisual interno a necessidade de lidar com diversidades e especificidades de uma sociedade que tem sua base cultural alimentada pelas heranças de matriz africana, ao passo que foi alicerçada em uma distribuição de renda e riquezas fundamentada nas divisas escravistas das capitanias hereditárias, desaguando toda a população no que Lélia Gonzalez chamou de “neurose cultural”, vez que há uma negação e asfixiamento da própria base e raiz cultural em nome de um enaltecimento  exacerbado da branquidade, atravancando avanços sociais e econômicos. Como solução, a própria Lélia Gonzalez nos apresenta o conceito de “amefricanidade”, para ser utilizado como ponto de partida para compreensão da formação histórico-cultural do Brasil e outras partes do continente americano. De acordo com Gonzalez:

 “Para além de seu caráter puramente geográfico, ela designa todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (resistência, acomodações, reinterpretação, criação de novas formas) referenciado em modelos africanos e que remete a toda uma construção de identidade étnica (Lélia Gonzalez, 1988. Nanny. In Revista Humanidades v. 17, a IV Brasilia: Editora UNB)     

O ideal de economia criativa, que orientou as políticas voltadas para o mercado cultural brasileiro, no período de 2003 a 2016, reposicionou o conteúdo audiovisual nacional no mundo, fortalecendo a população brasileira como uma audiência qualificada e exigente, apresentando o mercado brasileiro como uma vertente produtora de conteúdo competitivo mundialmente, atraindo possibilidades de co-produções, intercambio de talentos criativos e estabelecimento de grandes negócios. Ainda em diálogo com as ideias de Furtado, entendemos que tal reposicionamento deveu-se à compreensão de que a base epistemológica das políticas econômicas deveriam dialogar intrinsecamente com os agregados nacionais, alicerçando-se no comportamento de esferas ou “amalgamas" sociais como fonte de previsão e orientação de ações e políticas direcionadas ao setor.

Contudo, no fluxo dos negócios, aqui e acolá, orientados pelo comportamento, desejos e sonhos de consumo de uma sociedade composta por 54% de pessoas negras, as assimetrias  de raça, gênero e regionalidade ficaram expostas. E, junto ao processo de consolidação do mercado audiovisual  para dentro e para fora, iniciou-se um percurso de aprimoramento das estruturas e instâncias do setor, rumo à garantia de espaço e acessos a pessoas negras, indígenas, mulheres, pessoas trans, bem como empresas vocacionadas para conteúdos identitários, ou seja, empresas que em seu corpo societário e decisório contam com pessoas oriundas dos seguimentos com acesso minoritário.

Esse percurso de garantias às “minorias” no setor audiovisual é fruto de um pulsante movimento de audiovisuais negros e identitários em constante expansão em todas as regiões do país,  alinhados globalmente com os questionamentos das práticas excludentes de toda indústria audiovisual mundial, expondo as crateras das iniquidades presentes em estruturas como Hollywood, o Festival de Cannes e a premiação do Oscar, evidenciando assim um caminho sem volta. Já não é mais possível crer no fortalecimento de um setor criativo, em qualquer parte do mundo, que não considere a importância de representação qualificada de parcela significativa dos seguimentos historicamente deixados à margem do comando e gestão das rendas, riquezas e recursos materiais e simbólicos gerados pela atividade audiovisual.

A existência da velha tendência brasileira de descontinuidades das políticas de estado voltadas para o setor, que a cada mudança governamental são orientadas por uma nova concepção acerca da importância da cultura e das artes no desenvolvimento social, econômico e humano do país, asfixia e alarga o fosso que separa agentes brasileiros do comando das riquezas geradas globalmente pelo crescente consumo de conteúdo audiovisual pela audiência nacional. Neste contexto, o mercado interno, se desejar permanecer na corrida pela consolidação de seu posionamento global como agente produtor de um conteúdo competitivo, precisará assumir a “amefricanidade” como pulmão do mercado audiovisual brasileiro.

Viviane Ferreira
Viviane Ferreira

Cineasta, sócia-diretora da Odun Filmes, professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM São Paulo, presidenta da APAN - Associação de Profissionais do Audiovisual Negro e Diretora Artística do “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas.

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