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Artigo / Diversidade

10 Dezembro 2020

Diversidade inclusiva na narrativa audiovisual

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Diversidade inclusiva na narrativa audiovisual

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Como sabemos, a diversidade no audiovisual, é uma pauta social fundamental e pode acontecer de várias formas:

a) Pela inclusão temática, contando histórias que tenham protagonistas negros, mulheres, LGBTQIA +, etc… .

b) Mas só o tema não basta. É necessário também a inclusão dos artistas que representam essas vozes excluídas, democratizando as oportunidades e trazendo novas vozes para a criação das séries e filmes.

c) E, um terceiro aspecto, ainda menos discutido: a diversidade dentro da própria narrativa, do modo de contar uma história.  A pergunta é: como a tão buscada diversidade pode se manifestar na própria linguagem audiovisual?

É nesse aspecto que quero me concentrar nesse artigo, mostrando que a própria técnica narrativa pode e deve contribuir para o aumento da diversidade de vozes.

Antes vale lembrar que a diversidade nas produções audiovisuais, além de ser uma pauta social fundamental, é também uma pauta de interesse comercial.

Nos dias de hoje, todos querem se ver representados. Ter diversidade de vozes em uma equipe criativa e na própria narrativa pode ajudar a construir obras que dialoguem com públicos mais amplos.  Pesquisas recentes, como a do Instituto Locomotiva, mostram que a diversidade nas empresas melhora até mesmo seu  desempenho comercial. O mesmo acontece com audiovisual: equipes de criação mais diversas podem atingir públicos maiores, pois conseguem incluir vários segmentos sociais, criando narrativas que promovam o diálogo.

Mas como a diversidade pode acontecer na narrativa?

De duas formas: incorporando cosmovisões de culturas não hegemônicas e criando narrativas polifônicas, que tenham várias vozes em diálogo na mesma obra.

            As narrativas polifônicas são fundamentais para o sucesso e para uma ética narrativa que priorize a diversidade.

            Narrativa polifônica é uma narrativa que incorpora várias vozes.  A polifonia cria uma narrativa mais dialógica, em oposição à narrativa monológica.  A narrativa monológica é feita para passar uma mensagem clara e bem definida.  Ela cria um mundo mais maniqueísta, onde o bem e o mal são claramente separados.  O interessante é que esse modelo maniqueísta não funciona mais nem para as crianças e jovens. Sucessos como “Meu Malvado Favorito”, “Megamente” e "Malévola" mostram que a contemporaneidade tem procurado entender o vilão, fugindo do maniqueísmo entre bem e mal.

            Para superar o maniqueísmo temos que aprender a criar narrativas polifônicas. E para criar uma narrativa polifônica temos que ir além do lugar de fala e refletir também sobre o lugar de escuta.  Não basta a história ter os temas da diversidade e criadores diversos.  Isso é fundamental, mas não é tudo. É importante também que o criador tenha a prática de ouvir vozes diferentes da sua, criando histórias que promovam diálogos entre minorias e maiorias, entre cosmovisões e éticas totalmente diferentes.

Em minha carreira como roteirista tive a sorte de começar como roteirista chefe da terceira temporada da série Cidade dos Homens, que Fernando Meirelles criou para a Globo.  O roteiro da série foi criado a partir de oficinas e vasta pesquisa de campo dentro das comunidades cariocas.  Nós, como roteiristas, praticávamos o lugar de escuta, colocando nossa técnica a serviço de expressar aquelas vozes.  Em paralelo, é claro, a produção fortaleceu as oficinas para jovens das comunidades, formando novos talentos para que eles possam criar seus próprios filmes e obras, iniciativa que deve continuar e crescer.  Na escola que dirijo, a FICs, fazemos questão de ter bolsas para mulheres negras e transexuais e isso enriquece muito os exercícios em sala de aula, melhorando a formação de todos os alunos.  Mas, complementar a formação, é recomendável que todos os roteiristas exercitem o lugar de escuta, se esforçando para incorporar outras vozes a sua história e ao seu jeito de narrar. 

Depois da experiência na Cidade dos Homens, o princípio do lugar de escuta passou a orientar minha técnica de escrita criativa, para filmes e séries que criei.  Em “9mm” fiz uma imensa pesquisa com policiais e trouxe o escritor Ferrez - autor que até então escrevia romances sobre a periferia paulista - para dentro da sala de roteiristas. Ele foi fundamental para criar roteiros que retratassem mais fielmente (e, portanto, de forma mais inovadora e criativa) aquela realidade.  “Unidade Básica”, série médica que faço para o Universal Channel, foi criada com duas mulheres, dando lugar de fala ao ponto de vista feminino. A necessidade dessa equipe criativa mais diversa fica mais óbvia quando pensamos em narrativas realistas, como essas duas séries citadas. Mas se aplica a todos os gêneros. Mesmo nas séries de fantasia que estou elaborando no momento, é fundamental ter a parceria com criadores que tragam outras vozes.

            Mas a diversidade que buscamos ao criar uma equipe diversificada, tem que ser efetivada também na escrita e na linguagem audiovisual. Não adianta ter uma equipe diversa e criar narrativas monológicas, que espantam boa parte do público.  Não adianta nada ter diversidade na equipe e criar narrativas feitas para aumentar o ódio entre os diversos grupos sociais, apenas para tentar se promover com as polêmicas digitais. A equipe deve ter vários lugares de fala, justamente para que os roteiristas exercitem  o real princípio do lugar de escuta. Não adianta uma única voz ser hegemônica, tem que criar diálogos reais dentro da equipe criativa.  Isso exige chefes criativos que saibam gerenciar a criação, criando ambientes que conciliem liberdade com ética, potencializando a criatividade de todos. Dessa forma, surgirá filmes que irão conquistar grandes públicos, pois criaram verdadeiros diálogos entre as diversas bolhas. Tudo que o mundo precisa hoje é de histórias que criem pontes entre bolhas tão diversas. De histórias que nos unam. Essa e diversidade inclusiva, que inclui a todos e se opõe a “diversidade exclusiva” que apenas reforça as bolhas.

Vou dar um único exemplo, pois acho que ajudará a entender melhor esse conceito. O Brasil de hoje se divide entre duas imensas passeatas/festas populares: a “Marcha para Jesus” e o “Dia do Orgulho Gay”. Eles têm visões totalmente diferentes sobre a homossexualidade e isso divide o país, influenciando até mesmo na eleição para presidente (vide a polêmica da “mamadeira de piroca”). O interessante aqui é observar que a diversidade não ocorre apenas nas questões de gênero, raça e orientação sexual. A diversidade ocorre também na diversidade de crenças e opções religiosas, que têm éticas e valores diversos. Ou seja, a diversidade, ocorre também nas cosmovisões de cada grupo social. Por isso, a diversidade de sistemas de crenças também é importante. Será possível criar diálogos entre essas duas cosmovisões, entre o público dessas duas imensas passeatas? É esse tipo de desafio, de criar diálogos entre crenças diferentes, que acredito que os roteiristas devem exercitar.

Comercialmente falando, o interessante é que cristãos e homossexuais são dois públicos imensos. Quem tiver uma boa história que aproxime esses dois públicos pode encontrar um imenso oceano azul e fazer um grande sucesso. Se os criadores fizerem um real lugar de escuta, eles irão superar seu próprio maniqueísmo e criar obras que sejam, simultaneamente, sucessos comerciais e artísticos. Surgirá obras que promovam o tão necessário diálogo entre as bolhas de cosmovisões distintas. Acredito que é esse tipo de conteúdo que o mundo precisa hoje. É mais fácil trabalhar com bolhas, que tem público segmentado garantido. Mas serão sempre, sucessos segmentados. E serão cada vez menores. E promoverão cada vez mais ódio entre as bolhas. O mais ousado comercialmente é tentar sucessos genéricos que romperão o modelo das bolhas, muito bem exposto no documentário “O Dilema das Redes”.

Para criar obras assim, os criadores têm que exercitar o lugar de escuta realmente empática. O artista tem que se libertar do hábito de julgar as pessoas, indo além do lado racional de julgar as crenças alheias. O artista deve esquecer um pouco a mente e lembrar do coração, exercitando o lugar de escuta e tendo empatia afetiva com pessoas diferentes dele mesmo. Só assim, o roteirista perceberá que ambos os grupos têm pessoas bem intencionadas e que acreditam com fé no que defendem.

Assim, mesmo sem mudar sua fé, os diversos públicos que assistirão juntos a essa obra, entenderão que é necessário ter diálogo entres as partes, pois todos vivemos no mesmo planeta. E que, além de necessário, é possível ter esse diálogo! É dessa forma que as boas histórias audiovisuais irão dar a alternativas existenciais para os algoritmos do “Dilema das Redes”, contribuindo para criar pontes coloridas entre as diversas bolhas do mundo.

Dizendo de outra forma: A diversidade deve ser inclusiva, deve incluir, não excluir. A fundamental inclusão das minorias não deve, necessariamente, excluir as maiorias. A necessária inclusão de histórias que até hoje foram não hegemônicas pode e deve criar diálogos com os sucessos e formatos já estabelecidos. Podemos criar um novo jeito de contar histórias que promova a real tolerância e o diálogo. É esse o desafio que convido todos os criadores de obras audiovisuais a participar!

Newton Cannito
Newton Cannito

Newton Cannito é autor roteirista de séries como Unidade Básica (Universal TV), 9mm (Fox/Netflix), entre outras. Roteirista de filmes como Reza à Lenda e Broder. Foi também Secretário do Audiovisual do Minc e é coordenador do Concurso Histórias para Unir o Brasil. (www.unirobrasil.com.br)

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