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Artigo / Audiovisual

16 Fevereiro 2021

Contadores de histórias

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Os territórios do norte da Austrália em parte são habitados desde dezenas de milhares de anos por um povo de caçadores e coletores, parte dos grupos aborígines que povoam o continente australiano, que parecem não ter mudado de forma de vida desde tempos imemoriais. Dentro destes territórios, no parque nacional Kakadu, existem paredes de rocha protegidas dos elementos onde há pictografias muito particulares, algumas delas abstratas.

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Elsie Bramell, um antropólogo que pesquisava o povo aborígene deste território, percebeu que as cerâmicas fabricadas no lugar continham frequentemente as mesmas figuras. Intrigado, teve bastante dificuldade em descobrir seu significado, já que os nativos evitavam persistentemente em falar do assunto, o que dava a pauta de que não se tratava de simples adornos. Mas com o tempo conseguiu se aproximar de um dos integrantes, explicou cuidadosamente em que consistia o seu trabalho, a sua relação com as diferentes culturas que investigava, e acabou ganhando a sua amizade e confiança.  Finalmente, foi convidado para participar num determinado dia para uma cerimônia muito especial, reservada a poucos integrantes da comunidade nativa, resguardada cuidadosamente. No dia combinado e depois do pôr do sol, foi conduzido pelo seu amigo aborígene a um lugar onde aguardavam uns poucos homens do seu grupo, sentados em torno de uma fogueira. Frente a eles e embaixo de um beiral natural de pedra, havia uma coleção das imagens em questão. Depois de um tempo de silencio, um dos homens começou a interpretar uma melodia utilizando um “didjeridu”, um instrumento de sopro de sons graves. A sucessão de notas alongadas no ambiente noturno foi criando uma atmosfera mágica.  O fogo iluminava as pictografias, e num determinado momento, outro dos homens iniciou um relato, que foi sendo traduzido de tempos em tempos a Bramell pelo anfitrião. O relato, sempre acompanhado da melodia, era uma cosmogonia, uma história da criação do mundo, dos homens, das estrelas. Falava sugestivamente do “tempo dos sonhos”, quando tudo foi criado, e quando os seres mágicos habitaram a terra. As pictografias pouco a pouco começaram a ter um sentido, havia uma história e uma sequência nelas, tudo começava a encaixar. Quando o evento chegou ao fim, a história resultou ser fantástica, inesquecível, extasiante, e não só pela história em si, mais pela forma em que foi contada, num ambiente magico, com imagens iluminadas pelo fogo, pela melodia, pela voz de um relator, mesmo que Bramell não compreendesse a língua. No caminho de volta, o anfitrião explicou que essa cerimonia frente as pictografias e a história contada foram passadas a eles pelos mais velhos, e antes deles por incontáveis gerações, e que assim tinha sido desde o tempo dos sonhos. Isto explicava o cuidado especial deste povo com essas imagens, porque são sua tradição, patrimônio cultural e religioso. 

Por datação de elementos orgânicos contidos acidentalmente nos corantes utilizados nas pictografias de Kakadu, sabemos agora que algumas delas têm aproximadamente 20.000 anos.

E penso agora.  Temos aqui imagens num muro, temos música, temos um relato que emociona. Mesmo que as imagens não sejam em movimento, isto não lembra uma experiencia familiar? Não podemos saber se a cerimônia é mesmo feita desde o “tempo dos sonhos”, mas estou tentado de pensar que há muito tempo os ancestrais destas pessoas inventaram o cinema. O fizeram com a tecnologia que tinham em mãos. Não tinham projetores, mas é cinema. Desde que nos entendemos por homo sapiens, somos uma espécie contadora de histórias, adoramos contar e ouvir histórias. Assim foi, assim é e assim será sempre, com e sem epidemias.

Carlos Klachquin
Carlos Klachquin | CBK@dolby.com

Carlos Klachquin é gerente da DBM Cinema Ltda, empresa de serviços, projetos e consultoria na área de produção e exibição cinematográfica. Formado como engenheiro eletrônico fornece suporte de engenharia em tecnologias de áudio, entre outras empresas, para Dolby Laboratories Inc, sendo responsável também pela administração de operações vinculadas à produção Dolby de cinema e ao licenciamento das mesmas na América Latina. Desde 2013, trabalha na implementação do programa Dolby Atmos na América Latina, incluindo a supervisão da instalação e a regulagem dos sistemas em cinemas e estúdios e da produção de som Atmos no Brasil.

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