Exibidor

Publicidade

Artigo / Legislação

17 Fevereiro 2021

STF mantém sinais favoráveis à liberdade de criação na produção audiovisual.

Compartilhe:

Diferente de outros países, notadamente aqueles de origem saxônica, onde a indústria da produção audiovisual é bastante forte, países como o Brasil tem ou tinham uma tradição jurídica bastante restritiva da liberdade de criação de obras, inclusive as audiovisuais, quando se utiliza elementos da personalidade de pessoas, como o nome, a imagem e outras características pessoais.

Publicidade fechar X

Há no mundo uma proliferação interessante de argumentos, roteiros e documentários baseados na vida de pessoas.  O direito brasileiro tem previsões que causam grandes incertezas para os criadores de obras de quando autorizações são necessárias relativas aos direitos de personalidade.

O Código Civil tem artigos, baseados na Constituição Federal, que são limites, muitas vezes estreitos à liberdade de expressão e criação, que demandam análises de conflitos de interesses protegidos. O que deve prevalecer entre os direitos constitucionais da proteção da imagem, do nome, da honra, da privacidade e da intimidade de um lado, todos como direitos autônomos e, de outro, a liberdade de criação e expressão.

A autonomia do direito à imagem, prevista no Código Civil, que colocava como condição de uso lícito a autorização prévia, quando a criação é para fins comerciais, teve uma interpretação bastante importante no julgamento do caso das biografias, pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em junho de 2015 (ADI 4815/DF). Nesse caso emblemático o STF  entendeu que  exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado ou por particular. E, mais, concluiu que a autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular, considerando que para a coexistência das normas constitucionais dos incisos IV, IX e X do art. 5º da Constituição, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias. Concluiu mais, que em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, é inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).

Com isso se abriu importante janela para arejar a produção de obras audiovisuais brasileiras, evidentemente sempre com cautela para se evitar abusos, porque o abuso de direito é um ilícito civil, devendo ser indenizável.

A partir de então a produção tem podido pensar em utilizar de pessoas reais e outras do entorno delas para ilustrar obras audiovisuais, sejam filmes, telefilmes, séries ou documentários, sem que haja necessidade de se buscar autorização dos retratados ou seus herdeiros e sucessores.

No último dia 11 de fevereiro de 2021 o STF deu mais um passo importante na confirmação de que a liberdade de expressão e criação deve ter uma posição privilegiada quando se coteja com direitos da personalidade, no julgamento que tratava do que se usou chamar de “direito do esquecimento”.  Trata-se de Recurso Extraordinário (RE 1010606 / RJ), onde foi concedida repercussão geral, em ação contra produção de conteúdo da TV Globo, (programa Linha Direta: Justiça) que retratava um crime ocorrido há mais de 50 anos.  O questionamento era trazido pelos parentes da vítima do crime, que não queriam mais ver os fatos e a imagem da falecida retratada em obras audiovisuais. Queriam que tudo fosse coberto por um direito de esquecimento. O STF entendeu que no nosso sistema jurídico esse direito não existe, estabelecendo uma tese, como precedente geral de que: “É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.

O importante desse novo caso é que não era um documentário com fotos e material de época, mas uma encenação dramatúrgica, tendo o Ministro Toffoli, relator, pontuado que: “De certo que, para a família da vítima, uma exibição encenada do crime será sempre dolorosa, mas não há afronta à imagem, licitamente obtida, por sua exibição em formato de novela ou documentário. A estigmatização, assim, que afirmam os recorrentes sentir desde a ocorrência do crime não pode ser imputada à exibição do programa, que não inovou quanto aos fatos. Por certo que os contornos de exibição, por conterem elementos de dramaturgia (o que, como já dito, não é ilícito), podem atingir a sensibilidade de todos os telespectadores – e, de modo muito particular, a dos familiares da vítima. Essa dor, todavia, não se deve à recorrida, sendo em verdade reflexo do ato criminoso, que permanecerá, como profunda cicatriz na família(...)”.

Esse novo julgamento abre mais uma janela para iluminar a possibilidades criativas, evidentemente sempre com responsabilidade e zelo dos criadores e produtores, pois trata de uma hipótese de dramaturgia sobre fatos e pessoas reais.

A preponderância da liberdade de criação já vem sendo reconhecida pelos Tribunais dos Estados em casos semelhantes, valendo citar julgado recente e semelhante da "Série Investigação Criminal", produzida pela Medialand, cujos direitos foram comprados pela Netflix. Trata-se de questionamento de Mércia Nakashima pleiteando a remoção de streaming e outras plataformas digitais, episódio da série documental referente ao crime pelo qual foi condenada.  O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu que há persistência e prevalência do interesse público ao conhecimento dos fatos relacionados à investigação criminal, ao processo judicial e especialmente à execução penal, pela prática de crime consistir em lesão, não apenas à vítima e seus parentes, mas à toda a sociedade, não podendo o condenado invocar a teoria do direito ao esquecimento (right to be let alone), ou obstar a divulgação de notícias relativas ao crime, ainda que em forma de documentário, por não estarem relacionados exclusivamente à sua vida privada, admitindo-se a utilização de fotografias e filmagens da pessoa do criminoso, não para expô-lo a situação vexatória, humilhante e discriminatória, mas para individualizar o malfeitor, dispensando sua autorização, por ser hipótese de "licença compulsória", não se podendo falar em comprometimento à sua ressocialização.

Com essas sinalizações o sistema judiciário está respondendo com possibilidades aos  brasileiros de criarem produtos com semelhante liberdade de outras jurisdições internacionais, nas quais o direito à liberdade de expressão tem permitido a produção de conteúdos de bastante interesse do público, quando contém informações de interesse público, sejam documentais ou dramaturgias. Evidente que indenizações por danos não são afastadas quando houver um desequilíbrio entre a utilização realizada e o direito das pessoas retratadas, o que requer sempre uma avaliação prévia da ponderação dos interesses envolvidos, caso a caso.

Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli
Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli | marcos.bitelli@bitelli.com.br

Marcos Alberto Sant’Anna Bitelli Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP Especialista em Direito do Entretenimento, Audiovisual, Propriedade Intelectual, Comunicações e Telecomunicações Sócio de Bitelli Advogados

Compartilhe: