05 Março 2021
A influencia do cinema de autor na gênese dos cursos brasileiros
As escolas de cinema em universidades brasileiras começaram no início da primeira metade da década de 1960. Por esse motivo, quem quisesse estudar a teoria cinematográfica, movimentos, estéticas e linguagens, tinham de frequentar cursos livres e cineclubes, mas quem desejasse adquirir conhecimentos técnicos tinha de buscar o dia a dia dos sets ou em oficinas e cursos. Por esse motivo, quem tivesse condições financeiras e o sonho de conjugar teoria e prática, precisava buscar escolas superiores em outros países, e as favoritas eram o IDHEC - Institut Des Hautes Etudes Cinématographiques (IDHEC), atual Fondation Européenne des Métiers de l'Image et du Son (FEMIS) da França ou o Centro Sperimentali di Cinematografia (CSC), atual Scuola Nazionali di Cinema, da Itália.
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Nessas escolas europeias, brasileiras e brasileiros tiveram contatos muito próximos com diversos movimentos, tal como o Neo-Realismo e a Nouvelle Vague. Através deles, o cinema de autor passou a fazer parte direta ou indiretamente do cotidiano dos primeiros estudantes das escolas de cinema nas universidades brasileiras, permeando suas produções e estabelecendo posturas que, em maior ou menor grau, se mantiveram por décadas, e que, por vezes, geraram currículos que, equivocadamente, não tratavam as obras audiovisuais como um produto a ser produzido e difundido em um mercado, com regras próprias.
O Centro Sperimentale di Cinematografia- (CSC), da Itália, foi a segunda escola de cinema no mundo e a primeira da Europa Ocidental, hoje a chamada de Escola Nacional de Cinema (ex Centro Sperimentale di Cinematografia- Centro Experimental de Cinematografia) datando sua fundação em 13 de abril de 1935, criada pelo regime de Mussolini. A Escola, hoje uma Fundação, goza ainda de grande prestígio e reconhecimento, atraindo estudantes das mais diversas localidades e que se tornaram cineastas de enorme prestígio. Brasileiras e brasileiros também frequentaram os bancos dessa grande escola, como produtor e diretor Duílio Mastroianni; o produtor e diretor César Memolo Jr.; o pesquisador Rudá de Andrade; o produtor e diretor Gerson Tavares; o documentarista e montador Trigueirinho Neto; o fotógrafo Guido Cosulich; o diretor Luís Sérgio Person, o diretor Roberto Palmari; o montador e diretor Glauco Mirko Laurelli (no ano de 1961, mas não o concluiu); o diretor Paulo César Saraceni; o produtor e diretor Gustavo Dahl; o fotógrafo Luiz Carlos Saldanha e a montadora e a diretora, roteirista, produtora Rose Lacreta.
Muitos dos citados acima começaram ou continuaram no Brasil suas reflexões sobre o cinema. Trigueirinho Neto participou de diversos cineclubes e do Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo; Rudá de Andrade foi fundador do curso de cinema na Universidade de São Paulo e Gustavo Dahl, primeiro diretor-presidente da ANCINE, foi cineclubista no Museu de Arte Moderna, frequentou o Curso de Iniciação ao Cinema no Centro Dom Vital e ministrou algumas aulas na habilitação em Cinema da universidade Federal Fluminense; Luís Sérgio Person foi professor na Escola Superior de Cinema São Luiz; Rose Lacreta estudou no Museu de Arte Moderna, no Curso de Cinema, com Joaquim Pedro Andrade; Glauco Mirko Laurelli estudou no Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo e Luiz Carlos Saldanha esteve presente no seminário ministrado pelo sueco Arne Sucksdorff na Cinemateca do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro.
Vários professores e estudantes ligados ao Centro, construíram o Neo-Realismo, que surgiu na Itália em plena II Guerra Mundial.
Os neo- realistas buscaram manter uma produção com poucos recursos, superando as dificuldades próprias da guerra e ideologicamente distante dos padrões de Hollywood, valorizando a atuação de amadores, planos ao ar livre, sempre com uma postura de crítica social forte, com temáticas sobre a fome, o desemprego, as agruras do proletariado e da classe média, vivenciadas durante e após a Guerra. O filme Obsessão (1942), de Luchino Visconti, é considerado a primeira obra deste movimento. Mas é Roma, Cidade Aberta (1945), de Roberto Rossellini, que alcança repercussão internacional. Outro expoente é Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica.
O Neo-realismo influenciou e inspirou outros movimentos, como a Nouvelle Vague e o Cinema Novo, e todos esses estiveram no embrião das escolas de cinema brasileiras, como as da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal Fluminense.
Em entrevista dada a minha pesquisa de mestrado em 2002, o professor Carlos Augusto Calil, que se formou em uma das primeiras turmas do curso de cinema da ECA-USP, declarou que havia um eixo muito nítido na Escola, que era a do cinema de autor “(...) filhotes do neo-realismo, éramos todos netos de Rossellini e filhos de Nelson Pereira dos Santos e da geração do Cinema Novo” (sic).
O professor Tunico Amâncio, da primeira turma ingressante do Cinema da UFF, também notava o mesmo em seu curso, segundo depoimento dado para minha dissertação de mestrado, em 2002: “Nelson (Pereira dos Santos) na cabeça não dá para pensar de outra maneira; tinha Gustavo Dahl, (José Carlos) Avellar; era todo mundo filiado a essa vertente” (sic).
Igualmente importante, criado um pouco depois do Centro, o IDHEC era a grande referência teórica internacional.
Em 1943 o governo francês fundou o IDHEC - Institut Des Hautes Etudes Cinématographiques, A Marcel L´ Herbier coube a primeira direção. A preocupação, desde o início foi a da oferta de uma formação que agregasse todos os aspectos das produções, tanto na história quanto na teoria e crítica no cinema.
Por estas relevantes perspectivas de abrangência e o aumento de sua reputação, o IDHEC, começou a atrair um número enorme de estudantes internacionais no pós-guerra, situação que mantém até a atualidade, em FÉMIS.
Além de eminentes figuras do cinema internacional, pessoas brasileiras passaram por lá, como o ensaísta e professor Paulo Emílio Sales Gomes. Também houve as que estudaram algum tempo ou chegaram a concluir os estudos, o diretor Joaquim Pedro de Andrade; o diretor e professor Rodolfo Nanni; o diretor Anselmo Duarte; o Diretor Ruy Guerra, o fotógrafo Jorge Monclar, diretor Romain Lesage; o produtor e diretor Sílvio Autuori; o produtor Luiz Carlos Barreto; o diretor Osvaldo Caldeira; o diretor Eduardo Coutinho; o diretor e montador Eduardo Escorel; Jacques Deheinzelin; a montadora Vera Freire; o produtor e diretor Saul Lachtermacher; o diretor Marcos Marguliès; o produtor e diretor Renato Santos Pereira; o diretor Geraldo Santos Pereira e muitos outros.
É possível afirmar, assim, que o IDHEC tem uma grande ligação com a atividade de ensino de cinema no Brasil, já que muitos dos supra mencionados estiveram, ou estão, presentes nas principais instituições formadoras de pesquisadores e realizadores do país. Paulo Emílio Sales Gomes, militante em muitas outras atividades na área do ensino e pesquisa, organizou o curso universitário de cinema no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, Unb, e foi um dos primeiros professores de cinema na Escola de Comunicações Culturais, posteriormente Escola de Comunicações e Arte (ECA) da Universidade de São Paulo ; Rodolfo Nanni, ministrou aulas no Seminário do MASP- Museu de Arte de São Paulo- e dirigiu a criação do curso de cinema na Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP, Ruy Guerra figurou como diretor do curso de cinema, de tecnólogo, da Universidade Gama Filho; Eduardo Coutinho estudou no Seminário de Cinema do MASP; Marcos Marguliès deu aulas e dirigiu o Seminário de Cinema do MASP; Saul Lachtermacher participou do CECSP e os irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira deram aulas de cinema no MASP.
Como não poderia deixar de ser, o IDHEC influenciou a Nouvelle Vague e vice-versa.
A professora Marília Franco, que se graduou na primeira turma de cinema da ECA-USP, também me falou, em 2002, como os primeiros filmes de estudantes seguiam a Nouvelle Vague e o Cinema Novo “A gente respirava Godard o tempo todo, e Resnais, aquela coisa toda. Os cinema-novistas, óbvio, eram todos os nossos grandes mestres. De uma certa forma todo mundo queria ser Glauber” (sic).
Nessas escolas europeias, o fundamental era a figura do AUTOR, esse ser quase mítico que povoa ainda o imaginário de muitos jovens que sonham em estudar a arte cinematográfica.
Jean-Claude Bernardet, em uma tentativa de situar o que seria o AUTOR e criticar essa concepção como um tanto quanto estéril, escreveu em1994 o livro O Autor no Cinema. Nele Bernardet define o que seria considerado O AUTOR no cinema.
O autor é um cineasta que se expressa, que expressa o que tem dentro dele. Podemos perceber vários traços nessa noção de autor que circula nos primeiros momentos da política, bem como na fase anterior, nos anos 40, quando a palavra autor era relativamente encontradiça em revistas e jornais franceses e ainda está em busca de si mesma (BERNARDET. 1994: 22)
Em diversas entrevistas, Bernardet, um dos primeiros professores do curso de cinema da ECA-USP (ainda ECC) manifestou sua contrariedade às concepções de cinema de autor. Discorrendo sobre seu livro, supra mencionado, considerava que a ideologia de autor já tinha cumprido o seu papel, com grande importância em determinadas épocas, como se deu com a qualidade inconteste das ideias de Glauber ou Truffaut. Essas ideias não teriam tido questionamentos suficientes, avalia o pesquisador, e se mantiveram apenas por inércia, com dificuldade de evoluir junto com o cinema.
De qualquer forma, como dito, elas influenciaram sobre maneira as concepções dos projetos pedagógicos dos primeiros cursos no Brasil, com foco na formação de diretores, situação que começa a mudar a partir de meados da década de 1990.
Concomitantemente à consolidação dos novos marcos regulatórios e aos esforços para construção de uma indústria cinematográfica, as escolas começam a proliferar já com uma nova mentalidade, valorizando diversas funções, tais como as de roteiro, fotografia e som. Ainda não observamos a maturidade necessária para compreensão do audiovisual também como negócio, com mais disciplinas de produção, de gestão, de difusão, de empreendedorismo, tão desejáveis para a formação de uma indústria, mas estamos chegando lá, sem abrir mão dos esforços para formação de artistas com características próprias, diversidade e independência.
Como disse Jean-Claude Bernardet, em entrevista para a Folha de São Paulo, em 1994:
Valorizo, por isso, a figura do produtor. Mas não se trata do produtor americano dos anos 30. Falo do produtor que tem os pés no chão e ao mesmo tempo está apaixonado pelo projeto do diretor. A ideia do produtor não significa para mim uma homogeneização do produto, é trabalhar dentro da diversidade, da surpresa, mas dialogando com o público (BERNARDET, 1994)[1].
Este é um dos muitos desafios que se apresentam para a formação em audiovisual e não só no Brasil.
[1] BERNARDET entrevistado por Lucia Nagib, Jornal A Folha de São Paulo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/11/29/ilustrada/8.html acesso em 03/03/21
**As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor e não refletem necessariamente a posição deste veículo.**

Luciana Rodrigues
Luciana Rodrigues é coordenadora da Pós-Graduação em Gestão de Produção e Negócios Audiovisuais da FAAP e professora na mesma instituição. É parecerista da ANCINE, colaborou na criação e foi presidente do FORCINE- FÓRUM BRASILEIRO DE ENSINO DE CINEMA E AUDIOVISUAL. É Doutora e Mestre na área do Audiovisual pela USP, possui bacharelados em Comunicação- com Habilitação em Cinema- e em Direito.