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Artigo / Ensino & Formação Audiovisual

28 Julho 2021

A construção machista de personagens femininas no mainstream cinematográfico

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"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher" (Simone de Beauvoir)



Você acredita na ideia de que somos influenciados pelo que assistimos? Se a resposta for sim ou talvez, vamos lá: no romance, fragilidade e impotência; na ação, infertilidade e frieza.

Por qual razão a complexidade dos personagens femininos ainda é pouco explorada e se constrói aliada ao gênero da filmografia? Somente no drama vislumbramos o lugar da complexidade e sensibilidade femininas? A comédia americana necessita objetificar mulheres de maneira leviana? O romance precisa representar relacionamentos abusivos opressores com mulheres que foram educadas para ser boas? O cinema francês e italiano são mais fluidos e compreensivos as faces múltiplas do núcleo feminino da existência? Por qual razão? 

Ao compreendemos nossa liberdade emancipatória através de grandes obras cinematográficas nos deparamos com algumas produções de massa que utilizam o arquétipo do Herói, em sua figura mais representativa: Hércules, para representar mulheres fortes…

Mesmo tendo em vista a possibilidade de abordar mulheres de Atenas, verdadeiras guerreias,  grande parte  dos roteiros mainstream continuam adotando o padrão masculino para construção de heroínas femininas. No longa Mulher Maravilha, especialmente na sua última versão 1984, a representação do feminino é exposta de maneira machista e deturpada, mantendo rivalidades obsoletas no conflito da narrativa.

Postura que vai contra os movimentos reais da emancipação e que quando replicada nas grandes narrativas nos faz pensar sua razão: é possível que grande parte dessa audiência sedenta por consumir o retrocesso de filmográfico queira cessar seu desejo opressor que está, graças ao movimento sufragista, no árduo trabalho diário de milhares de mulheres apoiando umas as outras, diluindo-se na sociedade de maneira gradual e  desconstruindo padrões negativos do real e do imaginário, tanto no individual quanto coletivo.

A desconstrução é estrutural e gradual, aos passos de tartaruga, no entanto, passos precisos e fundamentalmente significativos: as premiações no Oscar no festival de  Cannes desse ano exemplificam isso.

Mulheres na vida real estão em ascensão profissional. Se a liberdade e a desconstrução têm sido ampliadas na vida real, por que não torná-las explícitas com mais frequência no mainstream da grande tela? A complexidade feminina merece ser compartilhada através da construção de personagens femininas reais. Que não negam o sensual, o sublime, o frágil, roteiros que não castrem o real. 

"No dia em que for possível à mulher o amor não em sua fraqueza, mas em sua força, não para escapar de si mesma, mas para se encontrar, não para se abater, mas para se afirmar. Naquele dia o amor se voltará para ela, assim como para o homem, a fonte de vida e não de perigo mortal. Enquanto isso, o amor representa em sua forma mais tocante a maldição que confina a mulher em seu universo feminino, mulher mutilada, insuficiente em si mesma”.

Para nos libertarmos, precisamos realmente seguir o comportamento que em função do machismo foi definido como masculino? A diferenciação não faz sentido. A negação da feminilidade também não.  No novo longa da Marvel, Viúva Negra: mulheres formam um exército competente e resistente (dominadas e ao comando de um homem mais velho têm seus órgãos reprodutores retirados.)

Na vida e em muitos longas de sucesso nos cinemas, a feminilidade ainda é vista como fragilidade e pecado: nós não somos o sexo frágil (A obra de Simone, O segundo sexo, merece ser consultada a cada construção de personagem). No cinema e na vida, mulheres desiludidas choram pelos cantos por não explicitarem sua poderosa sensibilidade e necessidade de realização dos desejos mais ocultos. O machismo não permite que uma mulher seja plural: ou e é masculina ou sexual, esposa ou puta, mãe de família ou profissional: Sexylife, na Netflix, vislumbrou conflitos internos da protagonista de maneira interessante. A narrativa segue machista e problemática, porém há uma luz na sua trajetória no sentido de autonomia e libertação em produtos culturais de massa.

Eva comeu a maçã e nós, mulheres, ao desenharmos nossa sensualidade, somos ainda em muitos casos representadas de maneira limitada. Para sermos respeitadas precisamos ser menos mulheres? Não. Merecemos ser o que desejamos ser e almejamos que as próximas gerações assistam e tenham exemplos mais reais sobre a complexidade. Mitos e deusas na cinematografia que sejam coerentes com milhões de mulheres maravilhas que vivem, existem em suas vidas reais. Somos sedutoras; fatais, competentes, frágeis, ambivalentes, humanas. E só queremos ser aquilo que somos: com maquiagem ou sem ela. É sobre ser e não sobre representar papéis impostos como o que uma mulher precisa renunciar para ser quem ela deseja ser.  Merecemos mais personagens populares que explicitem isso.

Personagens femininas com seus órgãos reprodutores retirados são o exemplo da constante negação da nossa maior potência e diferenciação.  O longa Viúva Negra e tantos outros se não fosse pelo instante final seriam um atraso para emancipação múltipla que batalhamos tanto para conseguir. Precisamos reaprender o modo de criar personagens heroínas em nossas histórias.Vejo Mulheres em ação, ode aos roteiros em desconstrução. 

Ana Júlia Ribeiro
Ana Júlia Ribeiro

Ana Júlia Ribeiro é apresentadora; Mestre de Cerimônias da Expocine; Professora de Teorias da Comunicação e Direção de Atores e Apresentadores nos cursos de Cinema, Jornalismo, Relações Públicas, Rádio e Televisão e Produção Audiovisual da FAAP; Membro e Pesquisadora do Complexus - Núcleo de Estudos da Complexidade de Edgard de Assis Carvalho. Possui Bacharelado em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV e mestrado em Ciências Sociais - PUC - SP.

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