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Artigo / Artes Digitais

05 Outubro 2021

Gestão de Negócios em Artes Digitais – Frame II

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Ao observar a configuração da produção de conteúdos e propriedades intelectuais, tanto no mercado audiovisual brasileiro, como na produção global, disponível, especialmente, através das grandes plataformas de streaming e majors do mercado de salas de cinema, é possível ver e ouvir em toda parte produtos audiovisuais que utilizam alguma técnica da animação, prioritariamente ou de forma mista. Absolutamente, não há fronteiras para essa presença e, do ponto de vista do ensino em cinema e audiovisual, de onde o presente olhar provém, observar a formação da identidade histórica de consumidoras/es e realizadoras/es audiovisuais pode ser especialmente útil.



No Brasil, as escolas de cinema e audiovisual somam 184 instituições, com dados de 2020[1], somente contabilizando a oferta de ensino superior. Ao participar da formação acadêmica dessas/desses estudantes, incluindo as/os com foco específico em animação, pode-se observar que o desejo de trabalhar na área é oriundo de um sólido conhecimento empírico, da experiência de consumo de mídias, como espectadoras/es, jogadoras/es e usuárias/os de uma gama imensurável de conteúdos e formatos, todos eles vindo da indústria do entretenimento e, não raramente, de uma oferta de conteúdo “canônico” que acontece justamente em meio a tal universo midiático, a priori, sem ainda uma distinção histórica clara entre a arte do cinema e seu desdobramento industrial no entretenimento.

No contato com as primeiras historiografias, todas/todos as/os estudantes deparam-se, geralmente e primeiramente, com uma estrutura de sentimento que coloca o “nascimento” do cinema reificado no dispositivo clássico operado pela projeção coletiva de imagens em movimento que são ligadas umbilicalmente com o que se convenciona chamar de live-action, ou, em bom português, imagem-câmera, tal qual observado pelo professor Fernão Ramos. O primeiro termo, em inglês, é bastante usual para atuar como operador simbólico de diferença em relação ao imenso universo de imagens que não são produzidas com câmeras, mas igualmente integrantes tanto da arte do cinema, quanto da indústria do entretenimento. Ainda que a convenção seja a de uma certidão de nascimento ligada à câmera e, consequentemente, a todas as questões de “representação” que esse tipo de imagem produz, há de se considerar que tal história, assim como todas as outras, não acontece por mera sucessão causal e nem com o surgimento de “novidades”. Assim como os interesses de quem deseja trabalhar na área, o nascimento do fenômeno de consumo audiovisual, não exatamente do campo da arte do cinema, é decorrente de diversas potências e desejos anteriores que ficam mais evidentes no século XIX e vêm até nossos dias.

Antes do live-action tornar-se o sinônimo da arte e do entretenimento ligado ao cinema, muitas tecnologias já eram amplamente consumidas como estímulo, boa parte delas operadas a partir de técnicas “fantasmagóricas” da animação. O historiador da arte Jonathan Crary refere-se, por exemplo aos chamados “brinquedos óticos”[2], dos anos 1800, com nomes mais ou menos conhecidos, empiricamente, por nós: taumatrópio caleidoscópico, fenacitoscópio, zootrópio e talvez o mais impressionante, estereoscópio, tão atual como nunca nas tecnologias de eXtended Reality. Quase todos eram originalmente feitos para produzir ciência dura e rapidamente, mesmo há quase 200 anos, viraram objetos de consumo de massa, tal qual diversas tecnologias do século XX, todas elas bastante marginais em relação ao cânone: tubo de raios catódicos/televisão e videogames são os exemplos mais ilustres, sem ainda adentrar no surgimento massivo da internet na virada de século e sua acentuação ocasionada pelo consumo mobile, respondendo pela janela massiva do audiovisual contemporâneo.

Com relativa “traição” ao dispositivo clássico da sala de cinema, todas essas tecnologias ensejaram o modelo de espectador/observador individualizado, mais facilmente cooptado pelo consumo, dessa maneira, e capaz de operar, cada vez mais, suas próprias relações de espaço e de tempo ante às mídias. São essas/esses espectadoras e espectadores individualizados que, na verdade, não colocam fronteiras entre as diferentes ontologias de imagens, sejam produzidas por câmeras ou por processos de animação mais ou menos automatizados e fazem com que as técnicas da animação, sempre sorrateiras em relação ao reconhecimento canônico, sejam ubíquas nos produtos audiovisuais do contemporâneo.

A distância entre o papel de espectador e realizador audiovisual/proponente de propriedade intelectual, mesmo que ainda grande, tem encurtado-se bastante nos últimos anos, na prática, não como ilações utópicas de antigamente. São questões geracionais e arqueológicas, no caso das do século XIX, que atropelam tanto os modos de produção do mercado quanto a própria arte do cinema, assim como a formação em cinema e audiovisual. Desejos antigos que, enfim, tornam-se mais presentes a respeito de muitos aspectos da bios serem mediados diretamente pelo audiovisual. Eles não só se catalisaram durante a COVID-19, como permitiram que as relações produção e consumo, de uma forma ou de outra, permanecessem de pé durante a pandemia, elevando o audiovisual a uma essencialidade nunca sequer imaginada pela indústria.

Essa geração de realizadoras e realizadores audiovisuais, formadas no consumo de mídias, já está presente e ativa e pertence ao agora: fazem com que seja “natural” um modo de produção baseado em imagens-câmera conviver com outro totalmente, artesanal ou sinteticamente, animado. Dessa forma, uma propriedade intelectual rapidamente pode intercambiar-se de um formato linear para um formato de game, ou uma determinada espectatorialidade baseada no estímulo ou na imersão de um novo corpo, mais do que em qualquer outra coisa. A animação, como inclusa na indústria audiovisual digital (IAD), é uma técnica que há muito tempo vivencia a ubiquidade necessária ao entendimento de tal identidade histórica, seja de realizadoras/es ou de consumidoras/es do audiovisual do presente.

 

[1] Dados do Fórum Brasileiro de Ensino em Cinema e Audiovisual (Forcine) disponíveis em http://www.forcine.org.br/

site/anais/numero-de-cursos-superiores-de-cinema-e-audiovisual-cresce-mais-de-100-em-quatro-anos/.

[2] Para saber mais, é possível ver o capítulo 4 do livro Técnicas do Observador, de Jonathan Crary, publicado no Brasil em 2012 pela Editora Contraponto.

Guilherme Carvalho da Rosa
Guilherme Carvalho da Rosa

Guilherme Carvalho da Rosa é professor e coordenador dos Cursos de Cinema da Universidade Federal de Pelotas. Participou da diretoria do Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual (Forcine) dos anos de 2015 a 2020.

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