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Artigo / Tendências & Mercado

17 Fevereiro 2022

Existe um direito ao esquecimento no documentário?

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2021 foi um ano marcante para o documentário no Brasil, dentro e fora das telas. Nas telas, documentários sobre crimes se afirmaram de uma vez por todas: O Caso Evandro, Elize Matsunaga: Era uma vez um crime e Doutor Castor são os exemplos mais emblemáticos de produções que despertaram grande interesse de crítica e público utilizando-se da exposição de casos criminais que marcaram época no país, reproduzindo de modo original aquilo que os documentários de true crime como The Jinx e O.J.: Made in America fazem no mercado americano. Fora das telas, o Supremo Tribunal Federal decidiu o chamado Caso Aída Curi (RE 1010606), estabelecendo com maior clareza e razoabilidade os limites jurídicos para a realização de documentários, especialmente aqueles que envolvem casos criminais.



Como todo documentarista sabe, a realização de documentários, ao lidar diretamente com fatos e sobretudo pessoas do mundo real, impõe numerosas questões de fundo ético e jurídico, o que às vezes pode até mesmo minar a produção. Não é à toa que Michael Apted declarou que a famosa série britânica Up, que acompanha pessoas ao longo de toda a vida, não pôde ser reproduzida nos Estados Unidos por falta de advogados. (1), assim como não é por qualquer coisa que um famoso caso do Direito Civil, o Caso Lebach (BVerfGE 35, 202, decidido pela Corte Constitucional Alemã), culminou na proibição do lançamento de um documentário sobre determinado crime no exato momento em que um de seus partícipes iniciava a ressocialização após período na prisão.

Por isso, o esclarecimento dos limites jurídicos das produções documentais contido na decisão do Caso Aída Curi é de grande valia, garantindo segurança para os produtores sobre o que podem filmar. Neste julgamento, finalizado em abril de 2021, o Supremo se debruçou sobre um pedido de indenização realizado pela família de Aída Curi, jovem vítima fatal de um estupro acontecido em 1958, devido à exposição de sua história em narrativa documental no programa Linha Direta: Justiça, exibido pela Rede Globo em 2004. Considerada tamanha distância temporal entre o acontecimento e seu retrato em documentário, os Ministros se questionaram em Plenário se não haveria um direito ao esquecimento no Brasil – ou seja, se pessoas poderiam invocar o direito à privacidade ou a dignidade humana para evitar a exposição de sua história e imagem por qualquer meio, inclusive em produções audiovisuais.

Embora a privacidade e a dignidade humana sejam garantias consolidadas no Direito Brasileiro, os Ministros decidiram que, quando instrumentalizados para fundamentar um direito ao esquecimento, estes institutos não podem prevalecer sobre o interesse público atrelado à informação nem servir como base à censura prévia, vedada pela Constituição. Segundo o Ministro Dias Toffoli, que serviu como relator e proferiu o voto que veio a prevalecer, o direito à imagem e à honra não pode ter precedência sobre a liberdade de expressão – com efeito, igualmente conforme a tese vencedora, o Direito fornece diversos mecanismos legais para eventuais correções e indenizações relativas às informações veiculadas, mas não pode impedir a realização ou lançamento de obras artísticas ou jornalísticas, contanto que seu conteúdo tenha sido licitamente obtido e atenda ao interesse público, independentemente da data de ocorrência dos eventos retratados.

Trocando em miúdos, a decisão implica que não existe um direito ao esquecimento no Brasil e, consequentemente, documentaristas têm liberdade para retratar seus personagens, mesmo que os identificando, sempre que os eventos tenham merecido a atenção pública em algum momento e as informações e materiais exibidos tenham sido obtidos por meios legais – ou seja, por meio de entrevistas consentidas e pesquisa em materiais públicos, de imprensa ou até particulares, contanto que com a devida autorização.

Assim sendo, documentários em geral e especialmente aqueles sobre crimes, sobretudo os que marcaram época e ocuparam páginas de jornais algum dia, ganham significativa liberdade para sua produção, mesmo quando lidem com dados pessoais ou até tragam novos elementos para o entendimento dos eventos retratados. Afinal, a Lei Geral de Proteção de Dados expressamente excepciona obras artísticas dos regramentos de proteção de dados pessoais e, de outro lado, a decisão do Supremo aceita qualquer informação lícita e pertinente, ainda que desconhecida do público.

Naturalmente, ainda segundo a decisão, as pessoas retratadas ou seus representantes podem buscar reparação quando as informações veiculadas forem mentirosas ou prejudiciais à sua honra ou imagem, mas, repita-se, não podem impedir a produção ou lançamento de uma obra, já que a veiculação é condição para a ocorrência de determinado dano. E, de todo modo, não há dano quando meramente se veicula uma informação licitamente obtida e compatível com o interesse público – inclusive por isso o Supremo não acatou o pedido de indenização da família de Aída Curi, uma vez que o Linha Direta: Justiça se limitou a dramatizar e dar publicidade a crime que de fato teve lugar tal qual retratado e chocou a sociedade brasileira nos anos 1950.

Com a consolidação de uma posição do Supremo tão favorável à liberdade de expressão e, em específico, à livre produção documental, é de se esperar que os anos que sucedem 2021 deem sequência à tendência de grandes documentários sobre acontecimentos que marcaram época, fomentando o debate público e a memória coletiva do país. Talvez assim a máxima do ex-Ministro da Fazenda Pedro Malan, segundo o qual “no Brasil, até o passado é incerto”, perca um pouco de sua graça – ou então ganhe novos contornos, com ainda mais ironia. O que importa é que, em matéria de história, qualquer desenvolvimento é mais rico que o simples esquecimento.

 

Referências:

(1)  https://www.hollywoodreporter.com/movies/movie-news/michael-apted-doc-series-up-why-hed-never-do-bond-film-1155288/

Daniel Eustachio
Daniel Eustachio

Advogado no Bialer Falsetti Associados (BFA). Doutorando em Direito na Universidade Pompeu Fabra (Espanha). Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (FD-USP) e Universidade Lumière Lyon 2 (França). Graduado e Mestre em Audiovisual pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade de São Paulo (ECA-USP), respectivamente. Co-fundador do Nelson 121 (Grupo de Estudos sobre Direito do Audiovisual da FD-USP).

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