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Artigo / Tendências & Mercado

25 Janeiro 2024

São Paulo na tela grande e a importância do cinema para construir uma nova cidade

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Hoje, São Paulo completa 470 anos de sua fundação, ocorrida no dia da conversão do santo que dá o seu nome a maior metrópole da América Latina. Parafraseando Mário de Andrade, São Paulo é uma cidade desvairada: caótica, efervescente, perigosa, charmosa, inesquecível e pulsante. Misto profundo de sensações vastamente variadas. Poucos lugares no mundo possuem tanta diversidade de culturas, sabores, tons de pele, identidades e contradições como a Terra da Garoa.

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Minha relação, como a da maioria de seus moradores - eu tomo a liberdade de ousar presumir -, é de amor e ódio, mas, como legítimo cidadão, passei os últimos dias tentando lembrar de tudo o que me faz amar mais do que odiar o lugar onde nasci e cresci. E, como sempre, recorri ao cinema para resgatar as memórias - próprias e alheias - desse labirinto afetivo que é a nossa grande cidade.

Lembrei-me de seis filmes que me marcaram e me fizeram conhecer São Paulo por novos ângulos, me levaram a espreitar seus bairros e personagens por novas frestas e descobrir as idiossincrasias que se entrelaçam como uma espiral em infinita expansão - um universo próprio.

 

São Paulo Sociedade Anônima (1965)

Dirigido por Luís Sérgio Person, esse clássico do cinema nacional é uma viagem no tempo para São Paulo do final dos anos 50 e começo dos anos 60. Sua narrativa e estética são fortemente influenciadas pelo melhor do neo realismo italiano e nos conduzem pela crise existencial de um executivo, passeando entre sua memória, seus amores e, especialmente, pelas ruas cinzentas e escritórios impessoais da cidade, refletindo sobre o crescimento desenfreado do boom da industrialização e toda a alienação que o mundo corporativo carrega. É um retrato cru e realista da Paulicéia de sua época, com a cidade sendo efetivamente um personagem no filme.

Tudo o que Aprendemos Juntos (2015)

Sob a direção de Sérgio Machado, o filme mergulha no universo da música clássica na periferia de São Paulo, inspirado pela história real do Maestro Baccarelli e a fundação da Orquestra de Heliópolis. No filme, Lázaro Ramos interpreta um violinista que assume o desafio de ensinar música clássica em uma escola pública em Heliópolis enquanto se confronta com suas próprias escolhas e frustrações. A obra é um verdadeiro tributo à força e resiliência dos jovens daquela comunidade e da potência da educação e da arte para transformar realidades. Esteticamente e sonoramente, acompanhamos os contrastes entre centro e periferia, cultura popular e erudita, educação formal e informal e passeamos por cenários emblemáticos da cidade, com destaque para a Sala São Paulo e a participação mais que especial da OSESP.

Carandiru (2003)

No emblemático filme de Hector Babenco, somos arremessados dentro de um dos episódios mais marcantes da história do nosso município, o massacre no presídio de Carandiru. O filme, baseado em fatos reais, é uma imersão chocante na vida dos detentos, com um olhar humano e cru sobre o sistema carcerário brasileiro. Com aproximadamente 200 mil presos no Estado de São Paulo, é fácil compreender que os presídios são como cidades em si mesmos. Em Carandiru,  vemos as facetas mais sombrias que uma cidade - e sua violência institucionalizada - pode oferecer. O tema é denso, necessário e, infelizmente, ainda urgente. Do ponto de vista fílmico, é uma obra prima do cinema brasileiro do século XXI e conseguiu compor alguns dos melhores elencos de todos os tempos, reunindo nomes como, Milton Gonçalves, Rodrigo Santoro, Luiz Carlos Vasconcelos, Lázaro Ramos, Gero Camilo, Maria Luisa Mendonça, Wagner Moura, Ailton Graça, Milhem Cortaz, Leona Cavalli,  Caio Blat, entre outros.

Que Horas Ela Volta? (2015)

Em seu quarto longa metragem como diretora, Anna Muylaert nos presenteia com um olhar sensível sobre a relação entre patrões e empregadas domésticas em São Paulo. Ambientado principalmente em uma casa de classe média alta de um bairro como o Morumbi, o filme explora as divisões sociais e emocionais dentro dos muros de um lar e consegue transformar aquele microcosmo na história de toda uma cidade - e todo um país. Enquanto acompanhamos essa luta silenciosa de classes, onde cada personagem busca seu lugar no mundo, nos deparamos com algumas locações fundamentais da arquitetura paulistana, como o Copan, de Oscar Niemeyer e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, desenhada por Vilanova Artigas. Mais um filme de atuações inesquecíveis, coroadas pelo prêmio de Melhor Atriz no Festival de Sundance de 2015 para a dupla de atrizes Camila Márdila e Regina Casé.

O Cheiro do Ralo (2006)

Este filme, dirigido por Heitor Dhalia, é uma viagem perturbadora pela mente de um dono de loja de penhores e sua peculiar obsessão com objetos, pessoas e, claro, cheiros.. A São Paulo retratada aqui é suja, decadente e repleta de personagens marginais, todos esculpidos pela mão e mente habilidosas de Lourenço Mutarelli, autor do livro que originou a história. A atuação de Selton Mello como o dono da loja de antiquário, localizada na Mooca, é uma aula de construção de personagem e merece ser vista e revista de tempos em tempos. Uma São Paulo sem nenhum  glamour e muita personalidade é o cenário perfeito para esta história que flerta deliciosamente com o surreal, um traço tão característico de Mutarelli.

Era o Hotel Cambridge (2016)

Dirigido por Eliane Caffé, este filme é um mergulho emocionante e realista na vida dos moradores de um edifício ocupado no coração de São Paulo, o tradicional Hotel Cambridge, que abrigou por muitos anos uma das festas mais tradicionais da cidade. Misturando atores profissionais e moradores reais da ocupação, "Era o Hotel Cambridge" conta histórias de imigrantes e sem-teto lutando por um lugar para chamar de lar, clamando por um senso de pertencimento em um espaço hostil. O filme captura a essência da luta por moradia na cidade e as inúmeras culturas que convergem nesse espaço. A maneira como São Paulo é retratada neste filme é única, assim como a linguagem híbrida de Caffé, uma das diretoras mais singulares do cinema brasileiro, que nos presenteia com a força, a diversidade e a resiliência dos que batalham diariamente pela dignidade daqueles que não possuem teto - ou nação.

Seria impossível terminar essa singela e limitada lista de recomendações sem destacar o recente e crucial papel da Spcine e da SP Film Commission na promoção de São Paulo como um destino de filmagem. Estas estruturas são fundamentais para atrair investimentos e produções cinematográficas para municípios e estão presentes em cidades do mundo todo, como Nova York, Los Angeles, Londres, Madrid, e dezenas de outras. Elas facilitam as permissões de filmagem, oferecem incentivos fiscais e apoiam logisticamente as produções tanto nacionais quanto internacionais.

No mundo inteiro as film commissions têm se mostrado eficazes na atração de produções internacionais e, portanto, eficazes também na geração de trabalho e renda. Em Los Angeles, por exemplo, a FilmLA relatou que em 2018, as produções na região geraram uma despesa direta de $6.9 bilhões na economia local. Em São Paulo, a SP Film Commission tem desempenhado um papel semelhante, atraindo produções nacionais e internacionais, contribuindo assim para a economia local e para a promoção da cidade no cenário global,  como nos casos marcantes das séries Black Mirror e Sense8 que utilizaram o mecanismo e tiveram cenas gravadas em São Paulo.

Sem investimento público, mecanismos de fomento e divulgação, gestão empresarial sólida e valorização da cultura, nenhum destes filmes teriam saído do papel e chegado às telas de milhões de pessoas. Sem o cinema, nossa cidade não seria a mesma, e certamente não lembraríamos dela da mesma forma. É preciso preservar o passado e a memória, documentar as lutas, contradições e avanços. E, igualmente, escrever ficções que nos façam imaginar novos futuros possíveis e  refletir sobre nossa existência. Espero que possamos olhar para esses filmes - e tantos outros - e sonhar  com uma nova cidade. Uma cidade que tenha cada vez mais capacidade de espantar o ódio e que nos permita sonhar.

Flávio Ermírio
Flávio Ermírio

Flávio Ermírio é um diretor e roteirista brasileiro. Provocado pela vontade e amor pela literatura e cinema, Flávio encontrou a possibilidade de conciliar ambas as influências na dramaturgia, principalmente na criação de roteiros para teatro. Durante a pandemia em 2021, idealizou um ambicioso projeto de baixo custo, que viria a se tornar o filme “A Casa da Árvore”. Exibido e premiado em diversos festivais internacionais (Nova York e Los Angeles), Flávio vem recebendo destaque com suas técnicas pessoais e dramáticas, onde representará o Brasil no final de 2024 no FANTLATAM na Argentina, principal premiação de Cinema de Fantasia da América Latina. Flávio fundou também a Poétika, produtora de conteúdo criativo para Cinema, Televisão e Teatro que tem como objetivo fomentar a economia criativa e fortalecer a produção cultural brasileira.

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