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Artigo / Tendências & Mercado

11 Junho 2025

Cineclube em Transe

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É fato notório: o cineclubismo, tal como o conhecemos, morreu — no tumulto da pandemia. Não sucumbiu por causas naturais, tampouco foi extinto de uma só vez. Morreu de excesso: excesso de telas, excesso de oferta, excesso de dispersão. Encontrou seu fim nas mãos de um mundo em que o audiovisual, onipresente, é moldado por algoritmos invisíveis, mais poderosos até que os censores do passado.



Mas é próprio da história do cinema que a morte nunca seja definitiva. Há sempre uma astúcia de sobrevivência, uma energia subterrânea pronta a subverter as lógicas dominantes. Assim, o cineclube ressurge hoje não como resíduo nostálgico de um passado idealizado, mas como contradição ativa diante das tendências hegemônicas. No passado, nosso cineclube, importado com atraso de Paris, era sobretudo sala de aula informal para uma minoria letrada, espaço de iniciação para poucos iluminados. Falava-se de Eisenstein, Buñuel, Chaplin — e, acima de tudo, discutia-se a identidade do cinema brasileiro em face das cinematografias dominantes. O debate era fervoroso: formar um público “de pesquisa”, insubmisso ao cinema industrial.

Nunca se tratou apenas de projetar filmes para plateias informadas, mas de construir, nas frestas da hegemonia, um campo de tensão — ideológica, estética e social. O mundo contemporâneo, porém, oferece outra paisagem. A explosão dos algoritmos — esse novo “imperialismo” invisível — fragmentou o público, individualizou a experiência, dissolveu a comunidade. O cineclube, nesse cenário, aparece como anomalia: propõe a escassez deliberada, o improviso, a curadoria artesanal, o encontro demorado com um só filme. Recusa o consumo desatento e descartável.

Um exemplo notável é a experiência do coletivo Marginaliaria, no Jardim Pantanal, zona leste paulistana. Ali, longe das salas climatizadas e dos circuitos consolidados, o cineclube se ergue em improviso: cadeiras de plástico se alinham na rua e a comunidade se reúne para assistir a filmes que provocam debates sobre pautas sociais urgentes, como “Chega de Fiu Fiu”, de Amanda Kamancheck e Fernanda Frazão, que trata do cotidiano do assédio. Não raro, o cineclube também se transforma em janela para cineastas locais, abrindo espaço para obras como “Fluxo”, de Filipe Barbosa, cujas imagens e narrativas dialogam diretamente com a realidade dos jovens da zona leste. O papel da curadoria, portanto, é decisivo: torna-se gesto de contrapoder, insurgência contra a normalização algorítmica e afirmação do direito de escolha.

É nesse sentido que os cineclubes das periferias, praças e ocupações assumem hoje papel central. Ao recusar o modelo patrimonial e elitista dos clubes intelectuais, fundem prática estética e formação social, convidando o público a ser coautor, não mero espectador passivo. Nestas experiências, a projeção do filme é apenas ponto de partida para uma apropriação coletiva da história, cuja radicalidade se verifica especialmente em territórios historicamente despossuídos de capital simbólico.

O renascimento do cineclube traz também um novo desejo: o de produzir, e não apenas exibir. Cineclubes se tornam núcleos de produção comunitária, atravessados por oficinas, debates e experiências audiovisuais. O cinema deixa de ser só espetáculo, passando a ser ferramenta de transformação — para “intervir no real”, como queria Glauber Rocha, e não apenas representá-lo. É no encontro entre corpos e ideias que o cinema, enquanto experiência coletiva, se reinventa. O cineclubismo continua, para quem quiser enxergar, a ser o espaço mais livre — e mais perigoso — do cinema brasileiro.

Talvez seja precisamente entre a morte e o renascimento — que o cineclube, como instituição de dissenso, de memória e de futuro, encontre sua vocação mais autêntica: ser o laboratório de uma comunidade em processo, de uma imaginação política, de um cinema que é, antes de tudo, o gesto de permanecer juntos, contra o esquecimento.

Inclusive, o edital para inscrição de novos agentes cineclubistas na Spcine está aberto até o dia 14/06: www.spcineeditais.com.br

Leandro Pardí
Leandro Pardí

Formado em Comunicação Social, possui vasta experiência em curadoria e gestão cultural. De 2006 a 2020, trabalhou na Cinemateca Brasileira, onde, a partir de 2014, assumiu a coordenação e a curadoria da programação institucional. Realiza trabalhos de pesquisa e curadoria independentes. Com atuação constante no fortalecimento do cinema brasileiro, foi responsável pela estruturação do projeto Cineclubes Spcine em mais de 30 pontos da cidade, ocupou a cadeira de coordenador de difusão e, atualmente, é Superintendente de Inovação e Políticas do Audiovisual na Spcine.

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