18 Junho 2025
O Capital, o Cinema e o Espetáculo: Cannes como Metonímia da Indústria Cultural
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É impossível ignorar: o cinema brasileiro se tornou presença constante nas principais vitrines do cinema mundial. Seja pela chegada de um governo mais simpático ao setor do que o anterior, seja pelo alcance dos projetos, que vêm ocupando espaço nas principais plataformas de streaming, nos maiores festivais do mundo e até no tão cobiçado reconhecimento da Academia, responsável pelo Oscar, o fato é que o país vive uma fase de afirmação global. Em 2025, bastava caminhar pela Avenida Croisette, epicentro do Festival de Cinema de Cannes, para perceber a força e a relevância do Brasil naquele cenário. Não apenas por ter sido oficialmente o País de Honra do festival, reverenciado e celebrado na maior parte das atividades realizadas, mas também pelos burburinhos que ecoavam pelos corredores do Marché du Film, não raramente em um português bem aberto, como só poderia ser o nosso. Centenas de realizadores do audiovisual se amontoavam pelos salões do palacete, em um movimento sem precedentes, pelo menos no que diz respeito aos números. Foi o Pindorama ditando o ritmo, e a cadência, em samba, no mais importante festival de cinema do mundo.
O Festival de Cinema de Cannes surge em 1939, concebido como uma reação direta ao Festival de Veneza, então cooptado pelos regimes fascistas europeus. Seu objetivo era claro: criar um espaço de celebração da liberdade artística, longe das pressões ideológicas e autoritárias. No entanto, a eclosão da Segunda Grande Guerra, no mesmo período em que ocorreria sua primeira edição, adiou o projeto por sete anos. Foi só em 1946, com o fim do conflito, que Cannes realizou sua primeira edição oficial, consolidando-se ao longo das décadas como um dos maiores e mais prestigiados eventos do cinema mundial. Uma vitrine onde convivem, até hoje, arte, mercado, política e espetáculo.
Uma coisa é fato: não apenas pelos recursos de que dispõe, Cannes ocupa um lugar central na história do cinema justamente por sua curadoria, que há décadas se dedica a tensionar a lógica da narrativa hegemônica. Foi ali que filmes, cineastas e cinematografias marginalizadas encontraram projeção, fugindo do apagamento sistemático promovido pela grande mídia, serva consciente do capital e de seus interesses. Cannes, com todos os seus paradoxos, foi e continua sendo uma plataforma capaz de emancipar vozes, deslocar olhares e projetar para o centro do debate global narrativas que o mercado, por si só, jamais permitiria circular — ou será que permitiria?
Apesar da trajetória como produtor frequentemente expor ao luxo e ao glamour associados ao sucesso na indústria, nada se compara ao contraste vivido durante o Festival de Cannes. Caminhar pela Croisette, vindo de um país onde as contradições sociais são mais que teoria, são uma realidade cotidiana, visível em cada esquina, semáforo e comunidade marginalizada, acentua esse paradoxo. Assiste-se a filmes sobre fome, guerra, colonização e opressão, enquanto, ao redor, desfilam carros de luxo, helicópteros, roupas de grife, festas exclusivas e iates de centenas de milhões de euros. Cannes nasce como um gesto político contra o totalitarismo fascista, mas inscrito nos limites do capitalismo liberal europeu, que também estrutura as desigualdades globais.
O fascismo, como alertaram pensadores como Theodor Adorno e Hannah Arendt, não é um acidente da história, mas uma possibilidade recorrente do próprio capitalismo em crise. Ao longo das décadas, o festival se transforma: de espaço de resistência, torna-se a própria expressão da indústria global do cinema. Hoje, Cannes é muito mais que uma vitrine de filmes, é uma síntese do cinema globalizado, atravessado pela lógica do mercado, pelos fluxos de capital, pela geopolítica dos financiamentos e pela reprodução das hierarquias culturais e econômicas. A contradição está dada desde a origem: um festival que nasce como recusa ao autoritarismo, mas que, pela dinâmica da indústria, se converte em ornamento simbólico do capitalismo global, ainda que preserve, em sua estrutura, a tensão permanente entre ser palco do mercado e espaço de emergência de vozes críticas.
Na lógica do capital, manifesta-se de forma cristalina a tese marxista do fetichismo da mercadoria. O festival, com sua estética exuberante, sintetiza esse conceito: o dinheiro não é apenas uma força invisível que estrutura as relações, ele se materializa em forma, desejo e linguagem. O carro, o vestido, o crachá, o coquetel e até o próprio corpo deixam de ser meramente objetos para se tornarem signos, ocultando sob uma superfície reluzente as relações de poder, classe e exploração que os sustentam. E não há contradição maior do que perceber que, nas próprias telas, circulam filmes que desmontam essas estruturas: obras como “Parasita”, de Bong Joon-ho, “Triângulo da Tristeza”, de Ruben Östlund, “Cidade sem Sonho”, de Guillermo Galoe, “Cafarnaum”, de Nadine Labaki, “O Ódio”, de Mathieu Kassovitz, e “Aquarius” de Kleber Mendonça Filho. O desconforto é inevitável. Estar ali, participar, transitar por esse espaço, já me inscreve no jogo simbólico da valorização do capital. Não se trata de uma questão moral nem de culpa individual, mas de uma constatação estrutural: o cinema que denuncia o capital circula, inevitavelmente, dentro dos circuitos que o próprio capital construiu. E isso não é uma abstração teórica, é a materialidade concreta da indústria audiovisual no século XXI.
O próprio financiamento de Cannes comprova essa lógica. O festival é patrocinado por conglomerados como L’Oréal Paris, Kering, Mastercard, BMW, JP Morgan e Chopard, todos diretamente associados às dinâmicas de exploração trabalhista, especulação financeira, desigualdade social e ambiental. A Mastercard enfrentou processos bilionários no Reino Unido por práticas abusivas contra lojistas. A Chopard foi investigada na França por suspeita de esquemas fiscais e esteve envolvida no escândalo das jóias presenteadas à família Bolsonaro pela Arábia Saudita. O JPMorgan foi processado nos Estados Unidos por discriminação racial em empréstimos, aplicando taxas mais altas a clientes negros e hispânicos. Esses não são casos isolados, mas expressões sistêmicas de como os mesmos agentes que patrocinam o festival estão diretamente implicados na reprodução das desigualdades que, paradoxalmente, tantas vezes são denunciadas nas telas.
A provocação, portanto, é direta, objetiva e desconfortável: se o cinema precisa, para existir, dos mesmos espaços que performam, financiam e celebram o capital, ele é, de fato, uma força capaz de ferir o sistema? Ou somos apenas o grau mais sofisticado da maquinária simbólica que ajuda o capital a parecer sensível, justo e democrático, enquanto segue sendo exatamente o oposto disso?
Guy Debord, em “A Sociedade do Espetáculo”, descreve como, no capitalismo avançado, a realidade se dissolve em representações e a vida social torna-se uma acumulação de imagens mediadas por mercadorias. No espetáculo, não basta existir, é preciso ser visto existindo. E, em Cannes, isso se manifesta de forma exemplar. O filme não é apenas algo que se assiste, mas algo que se consome socialmente. Estar na Croisette, na sala Lumière ou nas festas da Chopard não é só ver cinema, é performar pertencimento, ocupar um lugar dentro da hierarquia simbólica do mercado cultural global.
Dentro dessa lógica, até os gestos de resistência são capturados pelo próprio espetáculo. A presença de cineastas palestinos em Cannes, levando ao centro do palco internacional denúncias sobre o apagamento de seu povo, carrega essa ambiguidade estrutural. Por um lado, rompe cercos, visibiliza lutas e tensiona narrativas dominantes; por outro, é imediatamente absorvida pela lógica do espetáculo, que converte dor, denúncia e resistência em ativos simbólicos de circulação. O palco que dá voz também normaliza, transforma a exceção em elemento decorativo do próprio sistema que se pretende questionar. É a mecânica precisa do espetáculo: metabolizar o dissenso, estetizar o conflito e convertê-lo em mercadoria cultural.
É fundamental afirmar que isso não é, nem pode ser, uma acusação dirigida aos indivíduos. Os cineastas que ocupam esse espaço, muitos deles profundamente comprometidos com a transformação social, com a denúncia das opressões e com a construção de outros imaginários, não são, eles mesmos, cooptados pelo capital. São, como todos nós, agentes dentro de um jogo estrutural, onde é impossível fazer cinema, sobretudo cinema de impacto, sem dinheiro, sem circulação, sem acesso e sem mercado. O festival oferece espaço, microfone e visibilidade para filmes que enfrentam as narrativas hegemônicas, que desmontam os colonialismos, que denunciam violações de direitos e que expõem as fissuras do mundo. E isso importa. Isso é relevante. Isso não é, nem pode ser, descartável.
Mas diante da capacidade quase infinita do capital de absorver, neutralizar e estetizar a própria crítica que lhe é dirigida, uma pergunta se impõe com violência: como romper estruturas de dentro das próprias estruturas? Como fazer com que nossas contestações políticas, nossos movimentos simbólicos, nossos filmes e nossa verdade não sejam apenas mais um elemento no dispositivo de reprodução do espetáculo, mas brechas reais, rachaduras efetivas, forças que escapem, tensionem e, se possível, fraturem esse sistema que não se transforma, apenas se reinventa para continuar sendo o que sempre foi?
Debord chama de “détournement” o ato de subverter os signos, deslocar imagens, inverter discursos e arrancar os códigos do espetáculo de seus contextos originais, forçando-os a revelar suas próprias contradições. É uma estratégia de se apropriar da própria linguagem do capital para colocá-la, ainda que temporariamente, a serviço da crítica, do enfrentamento, da desmontagem. Mas não há ilusão possível aqui. O próprio Debord reconhece que o “détournement” é por definição instável, transitório e frequentemente capturado de volta pelo sistema que pretende desestabilizar.
Talvez, portanto, a única possibilidade real não esteja em buscar saídas puras ou externas às estruturas, mas em insistir no risco do desvio, no atrito constante, no tensionamento radical e consciente dos espaços que ocupamos. Isso passa, necessariamente, por reconhecer que festivais como Cannes são, sim, parte dessa engrenagem global do capital, mas também podem ser, e já são, em alguma medida, plataformas importantes para a emergência de vozes, narrativas e cinemas historicamente marginalizados. A questão não é negar a importância desses espaços, mas ampliar a consciência coletiva de que eles, por si só, não bastam. Não quando esse compromisso é diegético - existe na narrativa, na superfície visível, mas não transborda para a transformação concreta das estruturas.
O caminho passa pela construção de uma coalizão sólida dos cinemas do Sul Global, capaz de criar seus próprios circuitos de produção, financiamento e circulação. Isso significa redes de coprodução horizontais, fundos soberanos e parcerias intercontinentais que disputem, inclusive dentro dos grandes festivais, o entendimento de que descentralizar não é estética, é urgência política e econômica. Cannes pode e deve ser parte desse movimento, não como centro, mas como aliado na redistribuição de poder, visibilidade e recursos. Desde que esse gesto não se esgote na curadoria, mas alcance as estruturas de decisão, de financiamento e de circulação global.

William Diniz
Com quase uma década de atuação no setor audiovisual, William Diniz atua na produção de longas e séries com vocação internacional, trazendo uma bagagem crítica construída a partir de sua trajetória nas Relações Internacionais. Já colaborou com produtoras como Academia de Filmes, O2 Filmes, Tambellini Filmes e Rosza Filmes, em projetos de destaque no Brasil e no exterior. É fundador e presidente da Oasis Filmes, produtora sediada em Salvador e dedicada a narrativas estéticas e políticas enraizadas no Sul Global. Atualmente, lidera a produção do novo projeto do premiado diretor austríaco Hans Weingartner.
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