25 Junho 2025
Lições da TV Paga para a regulação do streaming
Vanessa de Araújo Souza, sócia do Instituto Tamanduá e diretora do catálogo Curtaenem.org.br
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A zona do Euro avança para seu terceiro ciclo de regulação do Vídeo sob Demanda (VOD). Na França e Itália, países com cinematografias pujantes e reconhecidas, as plataformas globaiscatendem a obrigação de reinvestir até 25% e 20% de seus faturamentos, respectivamente, em produções locais e independentes. Não há notícia de queixa ou judicialização.
No Brasil todos os segmentos ligados ao audiovisual participam com a sua Contribuição ao Desenvolvimento da Industria Audiovisual (CONDECINE) e se submetem às regras de apoio à produção e à circulação da produção nacional independente - enquanto as plataformas globais de VOD surfam no conforto assimétrico da regulação zero há mais de 10 anos.
A chegada do streaming no Brasil desidratou fortemente a indústria da TV Paga, que chegou a ter mais de 19 milhões de assinantes, recolhendo ICMS acima de 20%, e hoje não passa da metade. Mas no total o mercado de conteúdo audiovisual pago ampliou-se bastante, através da Internet, recolhendo 2% de ISS: segundo a PNAD/IBGE, em 2002 havia 31 milhões de lares assinantes de algum serviço de streaming e uma pesquisa publicada pelo jornal Meio & Mensagem concluiu que o gasto médio seria de R$ 108 por família, indicando um faturamento total anual acima de 37 bilhões.
O Congresso brasileiro passou anos domado pela pressão de lobbies do audiovisual norte-americano para adiar a regulação. O Brasil tornou-se um dos maiores mercados de consumo de VOD. Manter a atual assimetria traduz-se em subserviência e deixar de promover um tremendo impulso ao desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira que, aliás, não para de mostrar talento para merecer o incentivo.
O Conselho Superior de Cinema, órgão colegiado com representantes de especialistas e da sociedade, propôs que a CONDECINE das plataformas globais de streaming corresponda a, no mínimo, 12% de seu faturamento no Brasil. Mas a proporção desta Contribuição segue sob discussão, com propostas legislativas anêmicas, de 3 e 6%, frente aos até 25% e 20% na França e Itália.
É importante também que a nova regulação em tramitação no Congresso não interrompa os avanços trazidos pela Lei da TV Paga, desde 2012. Esta Lei trouxe a obrigação de programadoras estrangeiras veicularem ao menos seis horas semanais de conteúdo nacional sendo a metade de produção independente e em horário nobre. O resultado foi as programadoras estrangeiras descobrirem o interesse da audiência no conteúdo local e veicularem sempre mais que a obrigação mínima.
Outra importante novidade introduzida pela Lei da TV Paga foram os canais “super brasileiros” — que veiculam pelo menos 12 horas de produções independentes por dia, como Canal Brasil e Canal Curta!. Segundo dados da Ancine, os quatro canais credenciados como “super brasileiros” exibiram, entre 2015 e 2023, a metade de toda a produção nacional independente. E a audiência somada destes canais não é socialmente desprezível: mais de 6 milhões de horas assistidas por mês, o equivalente a mais de 7 milhões de sessões de cinema por mês.
Com esta preocupação, a proposta de regulação do streaming relatada pela deputada Jandira Feghali (PCdoB/RJ) acerta pontos como os de valorizar a produção regional e a circulação dos conteúdos independentes no que propõe estímulos aos canais “super brasileiros” da TV Paga e o seu carregamento obrigatório por fabricantes de TVs conectadas. Mas muitos alertam que esta proposta cria novas assimetrias além de ser insuficiente .
Os operadores da TV paga tradicional estão migrando a entrega de canais lineares e catálogos VOD para o ambiente (ainda) desregulado e menos oneroso do streaming via Internet. É mister que a nova regulação assegure a continuidade da presença dos canais super brasileiros, e de catálogos VOD com o mesmo perfil, respectivamente nos operadores de TV via Internet (IPTV) – como DirectTV Go, Zapping, ClaroTV+, Roku – e nos distribuidores de catálogos de VOD - como Amazon Channels e WatchTV.
O risco de não se assegurar a circulação das múltiplas vozes da produção independente nacional, por veículos igualmente independentes, é submetê-las unicamente à curadoria das programadoras e plataformas globais. Só vão circular conteúdos aprovados pelas programadoras e plataformas de VOD globais.
Outro ponto a assegurar é a competitividade tecnológica da entrega, aos consumidores, dos catálogos de VOD constituídos majoritariamente por conteúdos nacionais e independentes. A metade das conexões de banda larga residencial no Brasil é servida por pequenos provedores regionais de Internet (ISPs). As BigTechs investem milhões em servidores para garantir entrega de qualidade para esta parcela do público. A Netflix informa em seu site “openconnect” que já instalou gratuitamente servidores em mais de mil provedores regionais de Internet. Uma política pública para assegurar soberania à circulação do conteúdo nacional independente – a ser financiada com Condecine VOD - vai precisar implantar e manter uma rede de entrega (CDN) semelhante à da Netflix, para uso coletivo pelos provedores de catálogos “super brasileiros”.

Vanessa de Araújo Souza
Vanessa de Araújo Souza é sócia do Instituto Tamanduá e diretora do portal CurtaENEM.org.br, uma iniciativa que une cinema e educação para engajar professores e estudantes em todo o Brasil. Atua há mais de 15 anos na criação e gestão de projetos de arte, cultura e educação, com experiência consolidada no desenvolvimento de documentários, séries e conteúdos audiovisuais voltados tanto para canais de televisão quanto para plataformas digitais.
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