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Artigo / Público

30 Janeiro 2020

O sentido do gosto

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Quantas vezes ouviu que “gosto não se discute”? Certamente um dos maiores sofismas contemporâneos. Gosto se discute e tem até a ciência do gosto. Nossas escolhas culturais são resultados de um conjunto de condições específicas de nossa socialização. A trajetória social e familiar influencia nossas relações primárias, nossa formação, as experiências da vida em grupo, criando uma espécie de trilha, que aqui chamaremos de destino de classe.  

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Nossa memória e nossa identidade estão diretamente ligadas a essa trilha e um espectro de possibilidades de escolhas culturais nos é dado a partir desse lugar. Esse espectro é infinitamente menor do que você imagina. Como sabemos? Pesquisa, padrões geolocalizados, etnografia, tabelas e estatísticas. Responder quem é moviegoer (o frequentador de cinema), e que filmes o agradam, depende do quanto entendemos seu destino e os decorrentes limites de suas escolhas. 

Nosso mercado aprendeu isso na raça. Muitos exibidores experientes, ao longo dos anos, foram construindo suas próprias percepções e sensibilidades sobre o público com base em erros e acertos. Isso é incrível, mas está longe de ser replicável ou possível de se escalonar. Com a data science, técnicas de etnografia e a sociologia do gosto podemos ir mais longe.   

O assunto é vasto e pretendo tratar em outros artigos por aqui. Mas vamos começar com um dos maiores enganos do mercado. A confusão de renda e classe. Renda é um capital material. A forma mais eficiente de seu aferimento é per capta familiar, ou seja, soma-se a renda familiar de uma residência e a divide pelo número de moradores. Uma casa com uma mãe solteira e três filhos, na qual a renda da mãe é de R$1500,00, é uma casa de renda per capita de R$375,00. São classe D.  

As categorias A, B, C, D e E para falar de consumo são limitadoras, porque levam em consideração pressupostos genéricos de consumo segmentados unicamente pela faixa de renda per capita familiar. Isso quando esse é o critério de renda. Não raro, reportagens e apresentações em reuniões de marketing e relatórios de institutos de pesquisa calculam renda de outras formas e distorcendo a realidade. Números também ajudam a dizer o que o cliente quer ouvir.  

A renda per capita familiar é importante para entendermos a distribuição de renda no país. Ela diz muito pouco sobre os padrões de consumo da população quando o assunto é hábitos culturais. Por exemplo, no Brasil, por conta de um anômalo sistema de parcelamento e crédito, somado a questões culturais, é um país onde muitas pessoas de baixa renda têm celulares de última geração. Algo impossível nos Estados Unidos. Renda não explica. Assim como muita gente da classe A e B, morando em capitais e próximos a shoppings podem, mas não frequentam salas de cinema. Por que isso acontece? Renda não explica.    

Atrelar renda a consumo é o primeiro grande erro para entender quem frequenta cinema no Brasil, ainda mais de um produto cultural como o cinema. Os hábitos de consumo estão ligados a capitais imateriais, como o chamado capital cultural. A decisão do moviegoer é interseccionada por outros elementos, inclusive externos a seu destino de classe, mas o capital cultural é preponderante nas possíveis escolhas de um determinado público. A grosso modo, capital cultural são os códigos que você adquiriu ao longo de sua experiência social. Você interpreta o mundo, e escolhe, a partir deles.  

Pierre Bourdieu (1930-2002), foi sociólogo francês com grandes contribuições para a ciência do gosto. Em “Anatomia do Gosto” e, talvez sua obra prima, “A Distinção” entendemos que existem tipos de capital cultural a serem considerados na hora de escolher um filme.  

O capital cultural incorporado, é aquele que você adquire através trajetória familiar e de sua socialização com ela, ou seja, de seus pais, tios, avós. A continuidade desse capital se dá na escola. Ela traz novas referências, reproduz outras tantas e somado ao capital incorporado na família, formam o amálgama mais importante para nossas escolhas, seja na hora de ver um filme, seja na escolha de um candidato na eleição. 

Outro capital cultural importante é o objetivado, que você adquire materialmente consumindo obras de arte e produtos culturais, como filmes. Filmes de fato são janelas da alma e nos educam para além do entretenimento. Por fim, existe o capital cultural institucionalizado, nossas titulações adquiridas na educação formal: bacharel, especialista, mestre, doutor, etc. Esse é polêmico, porque assim como o adquirido, é facilmente hierarquizado. Por exemplo, duração, qualificação formal dos docentes, complexidade do tema, grau de dificuldade das avaliações, regularidade nas notas, tudo isso é relevante na hora de avaliar esse capital.    

O capital incorporado na família e na escola é sem dúvida o mais importante para nós do cinema, porque ele é o lugar de onde a gente parte, onde se constitui o hábito da leitura, o hábito do consumo cultural. Romper com nosso destino de classe é superar o capital incorporado, seja para melhor ou para pior.  

No Brasil, os ricos e a classe média representam 20% de nossa população. Além de minoria, os hábitos culturais dessas classes estão muito abaixo da média mundial. Menos leitura, menos teatro, menos filmes. Essa condição tem a ver como a maneira como essas classes se formaram no Brasil, fruto da imigração de uma população europeia pobre e da população escravizada. Isso, infelizmente, impacta de forma massiva nosso capital cultural incorporado. Na Argentina, por exemplo, os hábitos de classe em termos de consumo cultural são mais parecidos com os dos países desenvolvidos, porque a formação de suas classes sociais é bem mais parecida com a do mundo industrializado. Por isso, o cinema deles é diferente em termos de consumo. 

Por tudo isso, para melhorar nossos números no cinema precisamos investir em políticas públicas de transferência de capital cultural muito precisas, precisamos de melhor formação cultural nas escolas, mas acima de tudo, precisamos entender que até lá, nosso público tem um gosto, ele é legítimo, é nosso, e muitas vezes a gente ignora isso, porque nós, tomadores de decisão do cinema, baseamos nossas decisões naquilo que gostaríamos de ser. O Brasil existe, é lindo e precisamos enxergá-lo. E quer saber, talvez o brilhante, divertido e recordista “Minha Mãe é uma Peça 3” seja uma boa luz nessa direção.

Steven Phil
Steven Phil | steven@institutodecinema.com.br

Steven Phil é pesquisador da Educação e da Cultura pela Universidade deSão Paulo. É autor, diretor e produtor de cinema. Diretor Executivo do Instituto de Cinema e do Instituto Cultura e Mercado.

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