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20 Novembro 2020 | Renata Vomero

Viviane Ferreira fala sobre caminhos para um audiovisual mais plural

Presidente do Comitê Brasileiro de Seleção do Oscar 2021 é responsável por iniciativas de inclusão e equidade no setor

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(Foto: Divulgação)

A gente vive um momento em que o mundo clama por inclusão, equidade e diversidade e isso se reflete diretamente nas pautas em torno do cinema. Em dados divulgados pela Ancine, dos 142 longas brasileiros lançados comercialmente em 2016, 75,4% dos longas foram dirigidos por homens, 19,7% por mulheres brancas, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros e nenhum por uma mulher negra.

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Pensando em formas de criar mais representatividade de gênero e racial e maiores oportunidades a estas minorias no setor, foram criadas diversas iniciativas para fomentar e incentivar essa diversidade. Um nome que está por trás de muitas delas é o de Viviane Ferreira, Mestra em Políticas do Audiovisual, Presidente da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), cineasta e empreendedora. Ela também foi eleita a presidente do Comitê Brasileiro de Seleção do Oscar 2021, que escolheu o documentário dirigido por Bárbara Paz, Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, para representar o Brasil na premiação.

Nos últimos meses, Viviane ainda criou duas iniciativas que visam entrar em duas frentes diferentes de apoio à inclusão de minorias no audiovisual e de representatividade nas plataformas e catálogos digitais. A primeira foi a Raio Agency - Rede Audiovisual de Inclusão Orquestrada, que visa conectar profissionais a empresas do setor. Além disso, também serão ofertados cursos, workshops e mentoria criativas com foco em profissionais do audiovisual. Todos organizados cuidadosamente a fim de capacitá-los ampliando suas chances de serem contratados.

A segunda iniciativa é a TodesPlay, plataforma global de filmes, séries e produções audiovisuais que tem o objetivo de contribuir para um mercado mais diverso e representativo. O serviço é gerido pela APAN e tem a Viviane como CEO do projeto. A estreia da iniciativa, em 18 de outubro, se deu como forma de homenagear o artista Grande Otelo, que completaria 105 anos na data. "A TodesPlay se apresenta como uma janela potencializadora do poder de invenção de talentos múltiplos, evidenciando as relações existentes entre o conteúdo, quem o realizou, e a audiência", salientou a CEO, na ocasião do lançamento.

Viviane Ferreira conversou com o Portal Exibidor sobre como enxerga o cenário atual do setor em termos de inclusão e os caminhos para tornar o mercado cada vez mais plural. Confira a entrevista na íntegra:

 

Você enxerga uma maior busca das empresas do setor audiovisual por equidade de gênero e raça na contratação de profissionais?  Como está este atual contexto no setor?  

Olha, percebo que paulatinamente o setor tem percebido que ele pode lucrar muito mais garantindo equidade de gênero e raça em suas estruturas e produções, do que insistir numa lógica oitocentista de manutenção de estruturas excludentes e com isso perder espaço no mercado e consequentemente dinheiro. E te respondo dessa perspectiva porque ainda é pequeno o universo de pessoas que não integram os grupos excluídos e que tomam para si a responsabilidade de enfrentar as raízes das desigualdades de gênero e raça que nos afligem. A percepção de mudança de consciência do setor está diretamente relacionada com uma necessidade iminente de reserva de mercado e ampliação de lucros, e no país com mais de 54% da população negra, é evidente a corrida do ouro para agradar essa parcela significativa de consumidores.    

Você acredita que houve uma evolução no sentido da inclusão de profissionais diversos desde que entrou no setor? Como era quando começou a atuar e como é hoje? 

Veja bem, a ideia de evolução faz parte do conjunto de noções epistemológicas que reitera os processos excludentes, por isso, vou preferir dialogar contigo de uma perspectiva de transformação. Quando somos tocadas por um filme, saímos dele transformadas. E o que acontece com o setor audiovisual no Brasil hoje é exatamente a mesma coisa, ele está transformado. O Ecossistema do setor hoje é composto por antigas lógicas e estruturas de condução das relações de trabalho e relações humanas - essas ainda fiéis à noções de evolução e exclusão; e por novas lógicas e estruturas, que por sua vez, surgem comprometidas com a noção de transformação do meio, inovação das relações de trabalho e humanas, de modo que possamos fazer valer a utopia de que o "Sol nasce para todos". Dessa maneira, o que acontece é que as estruturas antigas, na mesma lógica antiga de referendar a noção de exceção como garantia da manutenção das desigualdades, têm assimilado pessoas ou "quadros" oriundos das novas estruturas inspiradas numa lógica inclusiva, sem, contudo, levar junto a ideia de transformação. Essa movimentação toda nos dá uma falsa sensação de aprimoramento das relações e estruturas do audiovisual brasileiro, mas as novas iniciativas seguem a mercê do poder econômico, político e social que seguem controlados pelas antigas estruturas. É o xadrez à ser resolvido, porque a "lucratividade da diversidade" tem desafiado o nosso tempo e tem pautado como esses poderes serão redistribuídos ou não.            

Atualmente temos pouquíssimos filmes comerciais dirigidos por homens ou mulheres negras. O que você acha que falta para essa maior inclusão?

Te asseguro que o que falta não é criatividade, histórias potentes, competência e disponibilidade para que profissionais negres do audiovisual dirijam obras direcionadas ao circuito comercial. Retomo um tanto a reflexão da resposta anterior, para lhe dizer que falta mesmo é uma redistribuição do poder econômico no setor. Quando for possível que as empresas produtoras e distribuidoras geridas majoritariamente por pessoas negras acessem os recursos econômicos e materiais que o mercado direciona para as empresas, quase sempre comprometidas com antigas lógicas evolucionista e geridas por pessoas brancas, poderemos ter no circuito comercial um quantitativo significativo de obras dirigidas por pessoas negras. Ou ainda, quando as estruturas dominantes recorrerem ao assimilacionismo para trazerem pessoas negras para direção de suas obras comerciais. Esse último caminho, vejo como um processo em curso, e não julgo profissionais negros que encontrarem nele a possibilidade de realizar seus sonhos de dirigirem narrativas que cheguem a um número maior de pessoas a partir das estruturas comerciais, porque julgar seria incoerente com a minha própria disponibilidade em construir minha carreira a partir da direção de obras produzidas pela Odun Filmes, empresa gerida integralmente por pessoas negras mas que não tem assento na mesa de distribuição do poder econômico, e ao mesmo tempo,  a partir da direção de obras à convite ou contratação de empresas estruturadas na antiga lógica, geridas por pessoas brancas, e titulares de parcela do poder econômico que viabiliza produções comerciais.      

Como se dá a capacitação dos jovens negros que desejam atuar na área? Existem políticas de inclusão para essas qualificações? 

A capacitação de jovens negros que enxergam o audiovisual como alternativa de carreira, tem se dado pelas vias possíveis num país reiterador de lógicas coloniais e um Estado administrador de desigualdades estruturais, como é o caso da educação no Brasil. Dessa forma, a juventude negra tem sido formada pelos cursos superiores de audiovisual das universidades públicas e privadas do país, e enfrentado cotidianamente os limites dessas estruturas. A parcela que não inicia sua formação no audiovisual pelo ensino superior tem se encontrado em cursos ofertados por organizações e escolas livres de cinema. O que tem havido é política de transformação, a juventude negra tem desbravado as técnicas, códigos e tecnologias audiovisuais e garantido suas narrativas no mundo. 

Mas quero aqui dialogar sobre um fenômeno de crueldade existente por trás dessa pergunta que é derivada da mentalidade do setor sobre as qualificações profissionais das pessoas negras. Parte-se do princípio que as pessoas negras, diferente das pessoas brancas, precisam sair dos bancos das universidades portando um currículo com experiência em inúmeras produções de séries para streaming, inúmeras produções de longas-metragens com coprodução internacional, e participação nos principais festivais e eventos de mercado nacionais e internacionais, tudo isso para assumir a vaga de 1º assistente de câmera, direção , direção de arte ou qualquer outro departamento necessário ao processo de realização de uma obra audiovisual. Alimentando-se a ideia de que as pessoas negras nunca estão prontas para assumirem os postos de trabalho e criação disponíveis nas estruturas com recursos materiais e econômicos. Enquanto a juventude branca, e precisamos racializar também as pessoas brancas, tem a possibilidade de durante os estudos audiovisuais serem acolhidas pelas mesmas estruturas para experimentar, aprimorar na prática as teorias recebidas nas universidades, e amadurecer como profissional convivendo diariamente com as transformações tecnológicas e estéticas do setor. Foi olhando para esse fenômeno cruel, que em reflexões com a APAN, topei unir-me à outras pessoas na implementação da RAIO - Rede Audiovisual de Inclusão Orquestrada, uma plataforma dedicada a facilitar o network entre profissionais diversos e empresas atuantes no setor audiovisual, com o objetivo de contribuir que o início das trajetórias profissionais de pessoas negras, indígenas, LGBTQI+ possam ser  menos traumáticas. Nossa meta, é conseguir contribuir com a curadoria de talentos diversos e assessoramento de política de diversidade nas empresas do setor, para que em 2024 possamos comemorar a garantia de que as equipes das produções nacionais estejam compostas com ao menos 30% de profissionais negros, indígenas, mulheres, e profissionais LGBTQI, alinhadas com os desafios e metas propostos ao mundo pela Academy of Motion Picture, Arts and Sciences (AMPAS), responsável pela premiação do  Oscar.  

Falando da TodesPlay, como se dá a curadoria do catálogo e quantas obras já constam na plataforma? 

A TodesPlay, também é outra iniciativa que nasce de reflexões junto à APAN, que junto com Thais Scabio e uma equipe massa topei o desafio. Embora no Brasil não tenhamos avançado ainda com a regulamentação da atividade do streaming, sabemos que o mercado de exibição tem se transformado e as plataformas streaming tem protagonizado essa transformação, valendo-se da amplitude de alcance que a internet permite. No entanto, assim como no circuito comercial de salas de cinema e/ou canais de TV, se repete nos streamings dominantes do mercado, a limitação de espaços para produções comprometidas com a quebra de estereótipos raciais, gênero, sexualidade e de regionalidade. E é nesse vácuo do mercado que a TodesPlay encontra sentido, razão de existência e para onde direciona seu olhar curatorial. A plataforma foi lançada com pouco mais de 30 obras em seu catálogo e com agenda comprometida com alguns festivais terão edição online em 2020, como é o caso do FIANB - Festival Internacional do Audiovisual Negro Brasileiro, realizado pela APAN, entre os dias 18 e 22 de novembro. Nossa meta, é comemorar a marca de 100 mil assinantes até 2022.           

Falando de festivais agora, vemos ao redor do mundo muitos eventos que já incluem em seus requisitos para inscrição de filmes, critérios que levam em consideração a diversidade. No Brasil, você também enxerga esse movimento nos principais festivais? Ou ainda há ações a serem realizadas?

Sem sombra de dúvidas, ainda que de maneira tímida os festivais brasileiros têm se transformado e aderido esse requisito em suas fichas de inscrições. Recordo que no ano de 2017, a APAN, realizou durante a programação do Festival Internacional de Curtas de São Paulo, uma mesa chamada "Quesito Cor: como ação afirmativa nos festivais", dela participamos Eu, Zita Carvalhosa, Yasmin Thayná e a brilhante socióloga Vilma Reis, daquela mesa o diretor do Festival de Brasília, a época, e a própria Zita saíram convencidos da importância do quesito cor nas inscrições de ambos os festivais. Agora, junto a inserção do quesito cor nas inscrições, ainda carecemos de transformar o olhar curatorial de muitos festivais no Brasil e no Mundo.     

Você, como presidente do Comitê Brasileiro de Seleção do Oscar 2021, utilizou algum critério em relação à diversidade para a escolha do filme do Brasil para concorrer ao Oscar?

A experiência de presidir esse Comitê foi muito significativa e importante, porque pude conduzir os trabalhos respeitando os princípios democráticos, num processo que foi todo orientado por debates e diálogos francos, saudáveis e respeitosos. Meu olhar no mundo é diverso, porque minha humanidade é diversa, e evidentemente não seria diferente durante a condução dos trabalhos e escolha do filme brasileiro indicado a concorrer ao Oscar. Nessa trilha vale ressaltar que em 19 títulos inscritos, pudemos ver um número significativo de obras buscando dar respostas à aclamação de 54% da população negra por mais representatividade na tela e atrás dela, no entanto a velha lógica da exceção seguiu imperando porque dentre elas apenas um título, M8 - Quando a Morte Socorre a Vida dirigido por Jeferson Dê, contou com o protagonismo e subjetividades negras na frente e atrás das telas. Contudo, assim como em todo processo de escolhas, é um conjunto de critérios unidos à um conjunto diversos de entendimentos  que determinam a escolha de um comitê, o que não foi diferente  no processo no qual elegemos o filme Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, dirigido pela Bárbara Paz. No conjunto de critérios e entendimentos expostos ao longo dos debates, diálogos e reflexões o comitê por maioria entendeu ser esse o filme, e saímos orgulhosos dos trabalhos ali realizados. Eu particularmente, estou feliz em ser um filme dirigido por uma mulher, a obra que poderá representar na premiação do Oscar um país que impeachmou sua primeira presidenta mulher, eleita legitimamente. E por falar em legitimidade, para além de uma direção feminina, Babenco - Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou foi legitimamente eleito porque reúne as qualidades estéticas-narrativas, poder de sensibilização de audiências e potencial de condução de uma forte campanha rumo à premiação do Oscar.           

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