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23 Março 2021 | Ylla Gomes

Justiça

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(Foto: Exibidor)

Por Ylla Gomes

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Querida leitora,

Durante semanas venho refletindo sobre o que escrever para você nesta coluna. Diante da realidade, algumas questões filosóficas têm me perturbado diariamente, o tema de hoje é Justiça. Revisei minhas anotações, fiz uma série de pesquisas, busquei informações em diferentes fontes, tentando trazer um pouco de luz e esperança para perseverarmos na luta com base na atuação coletiva, marcando presença constante no campo político. O conceito que utilizo de campo político é o definido pelo sociólogo Pierre Bourdieu “um campo é um campo de forças, e um campo de lutas para transformar as relações de forças. Em um campo, como o campo político (...) as condutas dos agentes são determinadas por sua posição na estrutura da relação de forças características desse campo no momento considerado.” E, por mais que os agentes sejam atualizados, a disputa parece continuar a mesma desde o início. O que seriam essas disputas: aumentar a presença do conteúdo nacional na grade de programação (TV ou cinema), criar oportunidade para que os diferentes setores da cadeia do audiovisual se desenvolvam, minimizar a concentração, construir relações de produção mais equânimes e mais diversas, possibilitar o ingresso de novos talentos, entre outras, afinal, “há no campo político, lutas simbólicas nas quais os adversários dispõem de armas desiguais, de capitais desiguais, de poderes simbólicos desiguais.” Essa tem sido minha visão sobre a construção de uma política pública efetiva no audiovisual brasileiro, uma luta onde é preciso batalhar muito para manter (em alguns casos, é anterior a isso, pelo direito de poder ter alguma coisa) e quem sabe avançar, por isso urge a elaboração de um marco legal do audiovisual.

Reconhecemos que a legislação que estrutura o setor apesar de possuir lacunas e carecer de renovação, principalmente em função da ausência de regulação do streaming, tem sido benéfica para o país e para o desenvolvimento do setor. Antes de avançar na discussão gostaria de ressaltar que as premissas basilares do sistema de fomento, incentivo e financiamento estão todas respaldadas na lei – desde os requisitos de acesso até a entrega do objeto e prestação de contas, tem sido assim desde a elaboração de Lei do Audiovisual – Lei 8685/1993.

Embora paire sobre nossa economia um espectro de liberdade econômica, de desregulação, de desburocratização, precisamos repetidamente nos perguntar em que tipo de sociedade queremos viver. A inspiração do texto de hoje veio de um livro de 2009 recém adquirido “Justiça – o que é fazer a coisa certa” do filósofo Michael J. Sandel, professor em Harvard (link abaixo). Neste, o autor discute temas atuais da perspectiva de diferentes correntes filosóficas, e nos leva a algumas conclusões “Justiça não é apenas a forma certa de distribuir coisas. Ela diz respeito a forma certa de avaliar as coisas” e passa a explicar por meio de exemplos o que seria uma política do bem comum, cidadania, sacrifício e serviço chegando a um ponto fundamental na atualidade “a menos que desejemos deixar que o mercado reescreva as normas que governam as instituições sociais, precisamos de um debate público sobre os limites morais dos mercados.” 

Nesse tabuleiro de xadrez no qual não existe casa vazia, quero dizer, não há possibilidade enquanto ativistas da cultura brasileira de nos ausentarmos da arena política, para avançarmos às vezes precisamos recuar, portanto irei retomar algumas questões já apresentadas nos artigos anteriores.

No artigo ”Superação” mencionei que o problema da Cota de telas permanecia sem solução, contudo na última semana tivemos também a análise do tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em um processo no qual foi reconhecida a repercussão geral da questão. No voto, o Ministro relator Dias Toffoli defende a importância do instituto apresentando argumentos existentes na própria Constituição Federal no que diz respeito ao título Da Ordem Econômica justificando que “tem propósito social e econômico, uma vez que se põe como uma entre as diversas medidas voltadas à ampliação da competitividade entre as indústrias do setor. Esse, ademais, é, do ponto de vista econômico, estratégico, uma vez que o domínio internacional na exibição de filmes implica constante drenagem de recursos para fora do país”. Outra conclusão que o ministro traz em seu voto é sobre o papel da cultura e o dever do Estado “os impactos sobre a esfera jurídica dos envolvidos encontram-se suficientemente justificados e compensados pela promoção de outros valores constitucionalmente relevantes, como a promoção da cultura e da identidade nacional, o estímulo à indústria audiovisual brasileira, sobretudo a independente, e a promoção dos interesses do consumidor. Disso não decorre – faço aqui o registro expresso – que a Constituição imponha qualquer política de cotas de conteúdo e de programação” e segue apresentando os artigos relacionados. Destaco porque o tempo que passei acompanhando as discussões no Congresso Nacional não era raro ser inquirida a respeito da liberdade de escolha e sobre direito do consumidor, e nesse aspecto em particular estamos sob o manto da justiça, apesar dos valores constitucionais não se sobreporem uns aos outros, precisamos pensar coletivamente, no resultado socialmente desejado.

Tem uma máxima no direito que sempre me encantou “contra fatos não há argumentos”, por isso é importante falarmos de números e analisarmos as séries históricas. Os dados são públicos e podem ser consultados na página do OCA – Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – quando falamos em paralisia do setor devemos nos atentar para o fato de que de 2015 a 2018 o Valor Adicionado pelo audiovisual (PIB do audiovisual) foi em média 25,5 bilhões de reais, segundo a própria Ancine mesmo em queda “o audiovisual supera indústrias relevantes, como a farmacêutica, têxtil, e de equipamentos eletrônicos. Os dados mostram ainda um forte crescimento do segmento de Vídeo por Demanda – VoD, sobretudo em 2017 e 2018 (...)O estudo mostra que o VoD se consolida, junto com a TV Paga e Aberta, como os mais importantes segmentos de consumo audiovisual e já representa 20,9% do valor adicionado pelo setor na economia.”     

Infelizmente o momento que estamos vivendo é assustador, tenho visto parceiras de luta descrentes em face do caos criado por conta dos desmontes e do excesso de desinformação – vide as recentes declarações da pasta cultura, alterações na Constituição Federal (PEC 186/2021), etc. Ao mesmo tempo, percebo que se evidencia a necessidade de explicarmos o funcionamento do fomento, do incentivo e do investimento no audiovisual e no setor cultural. Esse talvez tenha sido o maior aprendizado que tive em 2019 no Congresso Nacional, as pessoas que não são do setor não entendem como funciona, parlamentares participaram de inúmeras audiências públicas, receberam diversos advogados no intuito de compreender a disputa de forças, ainda há muito trabalho a ser feito no sentido de explicar como a indústria audiovisual brasileira chegou a ser a mais relevante dentro da economia criativa na última década. O Brasil é um país em desenvolvimento tanto industrial quanto de serviços, ao mesmo tempo que tenta superar essas barreiras tem que lidar com problemas profundos de desigualdade social por isso precisamos ser didáticos. Na última semana vi em diferentes veículos de imprensa e redes sociais esclarecimentos sobre o funcionamento da engrenagem cultural (deixo abaixo alguns links), acho que além de necessário é estratégico que a população seja informada sobre programas de renúncia fiscal do governo ou de desenvolvimento setorial.

Confesso que eu mesma tive um tanto de dificuldade de articular as ideias e produzir esse texto, mas precisamos acreditar porque precisamos sobreviver, e depois que esse horror passar, quem sabe ter um trabalho para onde voltar. Por isso fica aqui o meu desejo de saúde para você, sua família e seus entes queridos. Desejo força para superarmos esse período e, por fim, desejo que aprendamos a ser mais solidários porque é importante compartilharmos esse senso de responsabilidade social.

Abraço,

 

Ylla Gomes, brasiliense, antropóloga, estudou Direito no UniCEUB e Direito Constitucional Público no IDP, trabalhou no projeto PADOS da BrasilTelecom, tem uma empresa e produz filmes. Faz parte do grupo +MULHERES lideranças no audiovisual brasileiro e sofre com a saudade de um set

 

 

Referências

SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa; trad. Heloisa matias e Maria Alice Máximo – 28ªed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

BOURDIEU, Pierre. In: Pierre Bourdieu, “Conferénce: Le champ politique”, Propos sur le champ politique. Lyon, PUL, 2000.

Justice Harvard http://justiceharvard.org/

Observatório Brasileiro do Cinema e Audiovisual https://oca.ancine.gov.br/mercado-audiovisual-brasileiro

Ancine https://www.gov.br/ancine/pt-br/assuntos/noticias/audiovisual-brasileiro-gerou-r-26-7-bilhoes-a-economia-do-pais

Matérias sobre o setor : https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/o-setor-esta-quase-paralisado-diz-nova-presidente-da-spcine-sobre-audiovisual/

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/03/na-crise-da-ancine-estado-apoiador-acabou-virando-um-algoz.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/03/ancine-reprova-contas-de-filmes-de-xuxa-e-didi-de-15-anos-atras-e-escancara-crise.shtml

https://www.terra.com.br/diversao/lentidao-da-lei-rouanet-agrava-agonia-do-setor-cultural,83eafc08ed6c1f65b77e6bc0cbfdd010s6eu8qmi.html

 

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