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26 Novembro 2025 | Yuri Cavichioli

“Se amanhã as salas de rua fecharem, 90% do cinema brasileiro deixa de ser exibido”, alerta coordenador de revista especializada de cinema

Publicações independentes e iniciativas locais mostram como empresas podem fortalecer a formação de público e o setor de audiovisual

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(Foto: Alessandra Torres)

A formação de público de cinema, historicamente ligada às salas de rua, cineclubes e festivais, vem ganhando novas propostas, como as de publicações independentes que se conectam diretamente à programação exibidora. Em Belo Horizonte, a revista Vai e Vem, vinculada às salas de cinema do Centro Cultural Unimed-BH Minas, situado no Minas Tênis Clube, é um exemplo de como um projeto editorial pode atuar como peça de articulação entre curadoria, memória e mercado.

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Ao dedicar sua segunda edição à obra da cineasta Helena Ignez, desdobramento da mostra “A Mulher da Luz Própria”, a revista não apenas registra uma retrospectiva da diretora no Brasil, como consolida um modelo em que texto crítico, programação de sala e políticas de incentivo se somam em um mesmo ecossistema. A publicação reúne entrevistas, críticas, reflexões sobre restauração e interseções entre cinema e teatro, além de ensaio fotográfico, ilustrações e histórias em quadrinho, compondo um produto que prolonga a experiência da mostra e reforça o vínculo do público com o cinema brasileiro.

“Uma revista de cinema, seja online ou física, tem um papel de formação muito importante. É como se o filme não terminasse quando a sessão acaba”, afirma Samuel Marotta, cocoordenador editorial da revista Vai e Vem, programador de cinema e realizador. Segundo Samuel, o texto crítico cria uma interlocução contínua com o espectador, fazendo com que a relação com a obra se estenda para além da tela, como destacou em entrevista ao Portal Exibidor.

Para o representante da Vai e Vem, publicações desse tipo evitam que o público “caminhe sozinho com os filmes”, oferecendo sempre um contraponto, um questionamento, uma adesão ou um deslocamento. A revista, nesse contexto, ocupa um lugar de mediação entre obra, espectador e contexto histórico, compondo parte relevante do cinema como um todo.

“Me considero um fruto dessa geração de crítica online”, declara Marotta, destacando que seu trabalho em programação, direção e pesquisa nasce dessa convivência com textos críticos que tratavam tanto de lançamentos quanto de filmes de arquivo, movimentos cinematográficos e retrospectivas.

Além desse histórico, Marotta lembra que a crítica online dos anos 2000 provocou mudanças significativas no modo como o público se relaciona com cinema e informação. O surgimento de sites e revistas independentes transformou o modelo tradicional dos jornais e abriu espaço para estilos de escrita mais livres. 

Ele observa que, hoje, essa transformação contínua no ambiente audiovisual, com criadores de conteúdo no YouTube e em redes sociais produzindo análises, debates e leituras próprias dos filmes, trazendo um movimento que amplia a circulação crítica e integra novas camadas ao processo de formação de repertório.

Nesse cenário, a Vai e Vem se posiciona como uma publicação que transita entre público e mercado. Inicialmente pensada como ferramenta de formação, a revista hoje envolve diferentes profissionais em sua produção, como editora, designer, articulistas e revisores, todos contratados para cada edição. A publicação é viabilizada por leis de incentivo, o que permite a impressão, a distribuição gratuita e a manutenção desse modelo dentro das atividades das salas de cinema do Minas Tênis Clube.

“Até pouco tempo atrás eu diria que não é uma revista de mercado por ter objetivo de formação e que não corresponde necessariamente a um lugar de imediatismo. Contudo, com esse trabalho de programação de sala de cinema, entendo que um produto como a Vai e Vem preenche, sim, uma lacuna de mercado muito importante e pouco explorada”, esclarece Marotta.

A relação da revista com as salas de cinema reforça sua função dentro da programação cultural do Minas Tênis Clube. A publicação surge diretamente das atividades exibidas nas salas e retorna a elas em forma de crítica, registro e síntese das mostras realizadas ao longo do ano. 

A primeira edição, que teve como eixo principal o cineasta argentino Martin Rejtman apresentou um panorama crítico de um ciclo com várias mostras exibidas no espaço, enquanto a segunda, centrada em Helena Ignez, organizou um conjunto de conteúdos que acompanhou filmes, debates, cursos e masterclasses relacionados à diretora.

“Cabe a nós, programadores de cinema, dar a opção de que parte desse encontro formativo aconteça na sala, na revista, na crítica, no pensamento, no encontro. Acontece que o público se forma na conversa, no bar, no café, em casa, quando pensa no filme e nas conversas que aconteceram nos corredores”, opina Marotta.

Nesse contexto, formação de público não é tratada como um processo linear ou controlável, mas como possibilidade de encontro. A revista se junta a mostras, debates, cineclubes e encontros pós-sessão, compondo uma rede onde o público amplia repertório e constrói leituras próprias sobre os filmes. O resultado é um ambiente em que o cinema se torna um mediador constante entre experiências individuais e coletivas.

“Eu não acredito na palavra fidelização. O público se autoforma. A formação passa por inúmeras questões que não estão relacionadas apenas ao cinema. A vida como um todo é formação. Cabe a nós, programadores, dar a opção de que parte desse encontro formativo aconteça na sala, na revista, na crítica ou no pensamento”, complementa.

Em termos de mercado, iniciativas como a Vai e Vem mostram que há espaço para modelos em que conteúdo crítico, programação de sala e políticas públicas caminham juntos. A revista é viabilizada por leis de incentivo (Lei Rouanet na primeira edição e Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais na segunda), com distribuição gratuita e foco principal em circulação local, complementada por versão digital.

“Uma revista como essa tem um custo agregado, porque tem acabamento cuidadoso e conteúdo consistente. Toda a distribuição é gratuita e custeada via lei de incentivo”, esclarece Marotta. Para ele, enquanto não houver uma política pública específica para manutenção de salas de cinema, leis federais e estaduais funcionam como ferramentas essenciais para que projetos mais ambiciosos sejam executados sem depender exclusivamente da bilheteria.

Ao mesmo tempo, a revista movimenta a economia criativa ao contratar profissionais de editorial, produção, críticos, edição, design, revisão e texto a cada edição. Esse processo ativa uma cadeia de trabalho e redistribui recursos na comunidade, sinalizando às empresas que publicações independentes ligadas a equipamentos culturais podem representar um caminho objetivo de apoio ao audiovisual.

Na relação com o setor de exibição, a aproximação é imediata. A Vai e Vem nasce de salas de cinema e dialoga diretamente com programadores de outras cidades por meio, por exemplo, de retrospectivas anuais em que Marotta convida dez programadores de salas de rua a elencar filmes destacados no ano. Esses materiais se transformam em páginas que registram, em conjunto, parte do panorama da exibição em pequeno e médio porte no país.

“Gosto muito de pensar que as salas de rua têm uma espécie de ramificação entre elas. Na retrospectiva que faço todo ano, convido programadores de salas de pequeno e médio porte do Brasil inteiro. Cada um envia seus destaques e um texto sobre as escolhas. Isso aproxima ideias, mostra dificuldades comuns, a relação com as distribuidoras e os desafios de política pública”, conta o entrevistado.

“Quando você gera um conteúdo impresso, o que está em jogo também é a preservação da memória visual da sala de cinema”, destaca o editor. Ele projeta que, em algumas décadas, o conjunto de revistas poderá funcionar como recorte de época, com estilos de diagramação, cartazes e escolhas estéticas que contarão parte da história daquele espaço de exibição.

Com relação às políticas públicas de cultura e audiovisual, a Vai e Vem é apresentada como consequência direta de um uso estruturado de editais e leis de incentivo por parte das salas do Minas Tênis Clube. A publicação, no entanto, expõe uma lacuna: a ausência de uma política nacional voltada especificamente à exibição, à manutenção de salas e à difusão de cinema brasileiro.

Grande parte da produção nacional não passa pelas grandes redes, sendo sustentada por circuitos de exibição independentes que assumem o risco de programar filmes com pouco apelo de público imediato, segundo Marotta. “As salas de rua e de pequeno e médio porte são vetores fundamentais para a manutenção da memória e do cinema brasileiro”, conclui.

Iniciativas como a Vai e Vem, festivais conectados a salas de rua e programas continuados de mostras formam um conjunto de ações que poderiam ser observadas mais de perto por órgãos públicos. Marotta afirma que, a partir dessas experiências, seria possível desenhar políticas públicas específicas para exibição, equiparando esse elo da cadeia aos mecanismos já existentes para produção e, em menor escala, para distribuição.

“Se amanhã essas salas de rua de pequeno e médio porte fecharem, 90% do cinema brasileiro deixa de ser exibido”, afirma o editor. Na avaliação dele, esse dado simbólico resume a centralidade desses espaços e de seus projetos associados – entre eles, revistas, cursos, ciclos de debates e ações de formação – na sustentação de toda a cadeia do audiovisual.

Ao final, Marotta faz questão de destacar o papel do Minas Tênis Clube e da gestão do Centro Cultural Unimed-BH no apoio contínuo às salas de cinema e à revista. Todas as atividades culturais do equipamento são abertas ao público, com políticas de preço acessível e programação diversa, o que tem resultado em uma das maiores taxas de ocupação do país, seja para filmes comerciais, mas também nas mostras, retrospectivas, oficinas e sessões de pré-estreia.

“É preciso ressaltar as instituições que apoiam a cultura e, no caso específico, o cinema do jeito que apoia. Tudo o que fazemos nas salas só é possível porque o Minas Tênis Clube acredita na importância desse espaço e na reverberação do que é feito ali. Os equipamentos culturais do clube são abertos ao público e isso permite que a programação aconteça, que a revista exista e que projetos diversos possam se desenvolver de um jeito sustentável, inclusivo e com impacto que vai muito além do próprio clube”, enaltece Marotta.

No conjunto, a experiência da revista e das salas indica caminhos para empresas, clubes e entidades culturais que buscam atuar de forma mais efetiva no setor. A articulação entre programação, crítica e registro cria resultados visíveis em circulação e impacto local.

Ao investir em projetos editoriais, curadorias consistentes e no uso qualificado de leis de incentivo, essas instituições ajudam a manter o circuito de exibição ativo e a ampliar o repertório do público, garantindo que a produção brasileira siga presente em diferentes regiões e formatos.

Caso deseje, faça o download da revista em sua versão digital aqui.

Outras iniciativas

Em São Paulo, mais precisamente no cruzamento entre a Avenida Paulista e a Rua da Consolação, está localizado o Reag Belas Artes, uma das salas de rua mais tradicionais da capital, conhecida pela programação autoral, retrospectivas e projetos de preservação e difusão cinematográfica.

Dentro desse Grupo — que é o Belas Artes —, surge O Lanterninha, o guia mensal de cinema produzido pelo próprio Belas Artes. A publicação reúne artigos, notas e recomendações sobre estreias, relançamentos e títulos em cartaz prolongado, funcionando como uma ferramenta de orientação para o público que acompanha a programação da cidade.

Além de destacar filmes específicos, O Lanterninha consolida informações sobre as mostras e ciclos do cinema, reforçando o papel das salas de rua como polos de curadoria e formação de repertório. A iniciativa também exemplifica como equipamentos culturais podem ampliar sua relação com o público ao criar produtos editoriais integrados à experiência de exibição.

O Portal Exibidor entrou em contato com O Lanterninha, mas ainda não tivemos resposta até a publicação dessa matéria.

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