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Artigo / Panorama Jurídico

08 Setembro 2021

Scarlett Johansson, Premier Access e o futuro dos contratos no audiovisual

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Na última década, o amplo crescimento dos serviços de streaming (OTT) mudou a maneira como consumimos conteúdo, impactando também as diversas etapas da cadeia da indústria audiovisual. Decerto, a pandemia do covid-19, e suas consequentes restrições sanitárias, contribuíram para acelerar tais transformações; com os cinemas fechados, foi necessário pensar em novos modelos de negócio para manter a rentabilidade do setor.

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Nesse contexto, como alternativa à janela de exibição cinematográfica, a Disney adotou como estratégia para seus lançamentos o premier access. Anteriormente, em 2019, a empresa já havia lançado sua plataforma própria de streaming, o Disney+, que adotava exclusivamente o modelo SVOD; isto é, mediante o pagamento de um valor mensal fixo, o usuário teria acesso ilimitado ao catálogo de filmes e séries.

No entanto, em 2020, a plataforma passou a adotar também o modelo TVOD para alguns títulos, no qual o usuário realiza um pagamento unitário para ter acesso a determinado conteúdo específico. Esse modelo de premier access foi adotado para os lançamentos dos filmes Mulan, Raya e o Último Dragão, Cruella, Viúva Negra e Jungle Cruise.

Assim, um novo filme é adicionado ao Disney+ na data em que originalmente seria lançado nos cinemas; contudo, para assisti-lo imediatamente, o assinante deve pagar um valor extra. Após determinado período, de cerca de três meses, a obra passa ao catálogo regular do streaming e pode ser assistida livremente por todos os assinantes.

Destaca-se que, historicamente, na indústria audiovisual, a janela cinematográfica é um momento crucial para a recuperação do investimento feito em uma produção. Assim, mesmo com o desenvolvimento dos serviços de streaming, e a criação de cada vez mais conteúdo original por essas plataformas, via de regra, o retorno financeiro das bilheterias ainda desempenha importante papel.

No entanto, com o fechamento das salas de cinema em razão da pandemia, empresas como a Disney, que chega a investir 300 milhões de dólares em um único filme, depararam-se com o questionamento sobre como mitigar suas perdas. Nesse contexto, o premier access cria uma nova janela e utiliza o atrativo da exclusividade do acesso antecipado para motivar assinantes a desembolsarem uma quantia extra, trazendo assim um retorno financeiro maior do que apenas o do valor da assinatura.

A decisão da Disney não foi livre de problemas diversos, tanto dentro da indústria, quanto em relação aos consumidores. O premier access recebeu críticas por seu preço, especialmente nos países em que a conversão do dólar resultou em valores elevados; no Brasil, por exemplo, enquanto a assinatura padrão do Disney+ custa cerca de 28 reais, para assistir a um único lançamento, o usuário deveria desembolsar cerca de 70 reais.

Ademais, principalmente em locais em que as políticas antipirataria não são amplamente fortalecidas, cópias ilícitas dos filmes disponibilizados no premier access foram amplamente divulgadas online. Se antes os infratores, durante a janela de exibição cinematográfica, precisavam realizar gravações dentro das salas (camcording) para obter o conteúdo a ser pirateado, atualmente, a os lançamentos nos streamings facilitaram a obtenção de cópias ilegais em alta resolução.

Para além dos pontos mencionados, o premier access também gerou controvérsias jurídicas, por estabelecer um modelo de disponibilização dos filmes distinto do previsto no momento da produção. Nesse sentido, destaca-se a disputa judicial em curso entre Scarlett Johansson, atriz de Viúva Negra, e a Disney, em razão do lançamento híbrido do filme, disponibilizado simultaneamente no streaming e nos cinemas, em julho de 2021.

            O contrato entre Johansson e a empresa fora realizado em 2017, em um contexto pré-pandêmico, em que se esperava que a obra fosse lançada primeiramente apenas nos cinemas. Partindo de tal premissa, parte da remuneração da atriz estava atrelada ao desempenho do filme nessa janela, visto que ela receberia uma porcentagem da bilheteria arrecadada.

            No entanto, o filme foi lançado em um contexto em que, ainda que parte dos cinemas já houvesse reaberto, principalmente nos Estados Unidos, as restrições sanitárias e o nível de vacinação ainda divergem ao redor do mundo. Ademais, mesmo em locais em que grande parte da população foi imunizada e as restrições foram levantadas, as salas ainda não retomaram completamente o público e rendimento que possuíam antes da pandemia.

            Nesse contexto, a Disney optou por lançar a obra também no streaming, por meio do premier access. Destaca-se que, quando foi firmado o contrato entre a empresa e a atriz para a realização de Viúva Negra, o Disney+ ainda não havia sido lançado, de forma que não havia previsão nesse sentido. Johansson alega também não ter sido consultada a respeito da mudança de estratégia de lançamento.

            Por isso, a atriz ingressou com uma ação judicial afirmando que Disney frustrara a expectativa de que o filme fosse lançado exclusivamente nos cinemas, e que o premier access diminuiu a potencial arrecadação da bilheteria. Isso pois, além de o público poder optar por assistir ao filme em casa, o pagamento da taxa permitiria acesso ilimitado à obra, enquanto nos cinemas, caso um espectador desejasse reassisti-la, precisaria comprar novo ingresso.

Ademais, Johansson ressalta que a disponibilização do filme em alta resolução na plataforma teria facilitado sua ampla divulgação de forma ilícita durante a janela cinematográfica, o que contribuiria também para a diminuição da arrecadação. Finalmente, os advogados da atriz alegam que a divulgação publicitária do filme teve enfoque no Disney+ e não nos cinemas, de modo que sua imagem fora utilizada para promover um serviço que impactaria diretamente a remuneração pelo papel.

Nesse sentido, Johansson afirma que as escolhas adotadas teriam gerado uma vantagem injusta à companhia, que teria utilizado do filme para atrair uma base de assinantes para seu serviço de streaming, em detrimento da remuneração antes pactuada. Por isso, a atriz pediu reparação por perdas e danos, estimados em 50 milhões de dólares.

             Ainda não se sabe qual será o desfecho do caso, mas, de qualquer maneira, essa disputa é apenas a ponta do iceberg das potenciais controvérsias jurídicas que podem emergir no setor audiovisual no contexto pós-pandêmico. É certo que as relações nessa indústria se transformaram ainda mais rapidamente nos últimos meses, e os instrumentos e acordos antes utilizados podem não mais dar conta da complexidade do presente.

            Nesse sentido, daqui em diante, não apenas as contratações entre artistas e produtoras, mas entre todos os envolvidos na indústria, deverão repensar o funcionamento dessas relações. Afinal, são muitas as incertezas: como serão os lançamentos de filmes em um futuro próximo – exclusivamente nos cinemas, exclusivamente nos streamings, de maneira híbrida? A janela de exibição cinematográfica continuará sendo a principal fonte de retorno para as produtoras? Como recompensar adequadamente os artistas nesse contexto de transformação? Como aproveitar os atrativos do streaming sem prejudicar distribuidores e exibidores?

            Há poucos dias, a Disney anunciou o fim do premier access; a partir de setembro deste ano, os filmes voltarão a ser lançados exclusivamente nos cinemas e, após 45 dias, liberados para os assinantes do Disney+ sem qualquer custo adicional. No entanto, é possível que cada vez mais empresas do setor adotem modelos similares de lançamento, e que surjam novos debates e controvérsias.

            Assim, nos próximos tempos, muito ainda será discutido sobre como articular os interesses de todos os envolvidos nessa cadeia produtiva, adequando-a às transformações constantes do mercado audiovisual. Certamente, o Direito tem o importante papel de auxiliar tais discussões, visando garantir soluções contemporâneas nos conflitos que possam surgir na relação entre tecnologia e cultura.

Luísa Roman
Luísa Roman

Luísa Roman atua com Direito do Entretenimento no CQS/FV Advogados. É graduanda em Direito na Universidade de São Paulo (formatura em dez/2021), instituição na qual coordena o Grupo de Estudos de Direito do Entretenimento (GEDE-USP). Dedica-se também à pesquisa acadêmica, com enfoque na temática de Direitos Humanos e Gênero.

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