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02 Junho 2021 | Renata Vomero

"O filme foi um estudo muito acelerado da profunda desigualdade social do Brasil", ressalta diretor de "Cine Marrocos"

Documentário de Ricardo Calil chega quinta-feira aos cinemas do Brasil

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(Foto: Divulgação)

Entre os lançamentos desta cine-semana está Cine Marrocos, documentário de Ricardo Calil que conta a história da ocupação de pessoas sem-teto no abandonado Cine Marrocos, no centro de São Paulo. No espaço foi realizado o primeiro festival internacional de cinema do Brasil, em 1954.

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Premiado no Festival É Tudo Verdade em 2019 e nos mais tradicionais festivais do gênero no mundo, Cine Marrocos tem uma proposta de fazer uma homenagem ao cinema, ao mesmo tempo que dá protagonismo aos moradores daquele espaço abandonado, tão marginalizados na sociedade.

Desta forma, Ricardo Calil e sua equipe decidiram exibir os filmes do Festival de 1954 para os moradores, foram títulos como O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, A Grande Ilusão, de Jean Renoir, Júlio César, de Joseph L. Mankiewicz, Noites de Circo, de Ingmar Bergman, e Pão, Amor e Fantasia, de Luigi Comencini.

Numa segunda etapa do processo, criaram uma oficina de interpretação com os interessados, cerca de 30 deles, para reencenarem, e depois filmarem, algumas das cenas daqueles filmes. Enquanto isso, esses personagens iam contando suas histórias ao cineasta, dando vida ao documentário. Ao mesmo tempo, as histórias ganhavam mais camadas à medida que os clássicos do cinema eram reencenados.

“Fizeram a oficina cerca de 30 moradoras e aí com eles tivemos uma relação muito intensa naqueles dois meses, mágica, muito transformadora para todos. Conhecemos histórias muito ricas, de pessoas de várias partes do mundo, refugiados africanos, imigrantes latino-americanos, muitos brasileiros com histórias diversas, origens distintas. A oficina foi quando a gente realmente estreitou esses laços e foi realmente muito especial mesmo”, explicou o cineasta.

Desta forma, o documentário ganha um tom profundo de metalinguagem, contando histórias dentro de um cinema, reencenando clássicos da sétima arte e, claro, filmando tudo isso. Além disso, a profundida da conexão entre tudo isso se acentua, assim como as dicotomias trazidas dessas interações, já que é um espaço que já foi o cinema mais luxuoso da cidade, servindo, em 2016, de abrigo, talvez temporário, para pessoas em situação de vulnerabilidade, invisibilizadas. Tendo em vista, que, durante as filmagens, já havia um decreto de reintegração de posse do Cinema Marrocos.

“O documentário tem dois gestos políticos principais, o primeiro é reabrir aquela sala de cinema e exibir aqueles filmes aos moradores. É dizer que um cinema daqueles não pode estar fechado e abandonado. E que aqueles filmes que foram exibidos para a elite paulista em 1954, eles podem estar disponíveis para plateias em vulnerabilidade social, as pessoas vão ver, vão se interessar, vão querer conhecer mais da cultura cinematográfica, se tiverem oportunidades e acesso, eles vão entrar nesses filmes. O segundo gesto político foi fazer a oficina com eles e convidá-los a reencenar cenas dos filmes, porque essas pessoas, em geral, são vistas como invasores, marginais, bandidos, muitas vezes, você mostra no processo que se elas tiverem alguma oportunidade, elas vão mostras que são cheias de talento, cheias de beleza, cheias de força. Então, você acaba no processo derrubando esse senso comum da marginalidade. Outra coisa que é muito comum com eles, é serem invisibilizados, as pessoas não enxergarem que eles existem, então, a ideia do filme é um pouco dar a elas a vitrine mais bonita de todas que é a tela grande do cinema, para dar a elas a verdadeira visibilidade, maior visibilidade, e mostrar que essas pessoas podem também ser estrelas de cinema”, ressalta Calil, que escolheu aquela ocupação justamente por seu amor ao cinema.

O cineasta também reforçou o quanto aqueles dois meses de interação com o cinema e seus moradores reverberaram nele, tanto como pessoa, quanto profissional.

“Este filme me deu a oportunidade de conhecer esses universos, conhecer essas pessoas, foi quase um supletivo, um estudo muito acelerado na profunda desigualdade social do Brasil. Como cinema, me deu uma chance de trabalhar de uma forma mais pessoal, mais experimental, nessa fronteira entre documentário e ficção que sempre me fascinou muito e o Marrocos me deu a oportunidade de abrir essa seara pessoal que pretendo trilhar em outros filmes.

Muiraquitã Filmes assina a produção de Cine Marrocos, em coprodução com Olha Só, Globo Filmes, GloboNews e Canal Brasil. A Bretz Filmes é responsável pela distribuição. 

 

Confira a entrevista completa com Ricardo Calil:

Como foi o processo de desenvolvimento do documentário, principalmente, antes das filmagens com os primeiros contatos com os moradores do Cinema Marrocos?

O projeto do Cine Marrocos começa quando eu leio a notícia sobre a ocupação deste cinema histórico de São Paulo. Um cinema que recebeu o primeiro festival internacional de cinema do Brasil, em 1954. Vejo essa notícia e fico fascinado por essa ideia de cinema que é transformado em lar. Então, marco uma visita a essa ocupação, o cenário era muito fascinante, as pessoas eram muito fascinantes. Mas tem uma coisa muito interessante nessa primeira visita que é o fato de a sala de cinema em si estar fechada, e como eu amo cinema e odeio a ideia de uma sala de cinema fechada, decidi ali reabrir o cinema, junto com os moradores e a equipe. E aí tivemos a ideia de reexibir os filmes do festival de cinema de 54, que supostamente foi o momento de maior glamour, auge, daquele cinema. Pintou a ideia de fazer a oficina de interpretação com os atores, justamente refazendo as cenas desses filmes clássicos. Então, o trabalho com os moradores, foi de corpo a corpo cotidiano, de primeiro convidá-los a ver os filmes, depois para fazer as oficinas e aí sim fizeram a oficina cerca de 30 moradoras e aí com eles tivemos uma relação muito intensa naqueles dois meses, mágica, muito transformadora para todos. Conhecemos histórias muito ricas, de pessoas de várias partes do mundo, refugiados africanos, imigrantes latino-americanos, muitos brasileiros com histórias diversas, origens distintas. A oficina foi quando a gente realmente estreitou esses laços e foi realmente muito especial mesmo.

 

Como foi para você, como cineasta, contar essa história de dentro de um cinema, falando sobre cinema, mas mergulhando na vida dessas pessoas?

O que me atraiu para essa ocupação foi o fato de ela ser em um cinema, São Paulo tem muitas ocupações muito relevantes, mas como sou um amante do cinema, quis fazer um filme porque era uma ocupação dentro de um. É claro que quando chego lá, a história do cinema é muito importante, aí vou conhecendo aquelas pessoas e elas vão ganhando protagonismo no filme, são a alma do filme. Cada um dos personagens que a gente encontrou e que fez a oficina com a gente. É uma história que seria muito mais sobre o Cine Marrocos, a história do Cinema Marrocos, do Festival, mas pela paixão que a gente teve por aquele universo, aquelas pessoas, acabou se tornando um filme sobre elas, o passado vem muito filtrado pelas histórias de vida delas, é um filme sobre as pessoas reunidas neste espaço histórico, que é o Cine Marrocos.

Para você, como tudo isso do espaço cinema, a linguagem do cinema e as histórias daquelas pessoas se conectam?

Ao longo do processo a gente foi encontrando alguns paralelos muito interessantes, bonitos e inesperados. As histórias das pessoas, em alguns casos, lembravam muito as histórias dos personagens dos filmes que a gente exibiu para eles e eles ensaiaram nas oficinas.  Você tem o caso do Panda, por exemplo, um jornalista do Congo, que teve o pai que era Ministro da Defesa lá e que foi assassinado pela ditadura do país, ele acaba sendo ameaçado e foge do Congo, se refugiando no Brasil.  E aí você tem o papel do Jean Gibran, do filme A Grande Ilusão, de Jean Renoir, que é um piloto de avião francês, que é capturado pelos alemães durante a Primeira Guerra e tem que fugir. Então, ao longo do tempo fomos testando os papéis com vários moradores e, quando o Panda fez esse papel, as coisas se encaixaram muito, quando ele foi fazer a cena, fez em francês e em inglês, mas a coisa fez todo sentido quando ele usou a língua do Congo, que é Lingala, o que deu uma força, uma beleza e uma verdade para a cena que a gente nem esperava. Então, o processo todo foi feito dessas pequenas epifanias e esses encontros muito bonitos entre realidade e ficção. As histórias dos moradores iluminaram as histórias dos personagens, e vice-versa, as histórias dos personagens ajudaram a iluminar a histórias dos moradores, essa foi a beleza do processo.

 

O filme acaba mostrando muito duas questões gritantes do estado brasileiro: a forma como lida com a arte e cultura, e o tratamento desumano das pessoas marginalizadas. Como você vê isto sendo retratado no documentário?

O documentário tem dois gestos políticos principais, o primeiro é reabrir aquela sala de cinema e exibir aqueles filmes aos moradores. É dizer que um cinema daqueles não pode estar fechado e abandonado. E que aqueles filmes que foram exibidos para a elite paulista em 1954, eles podem estar disponíveis para plateias em vulnerabilidade social, as pessoas vão ver, vão se interessar, vão querer conhecer mais da cultura cinematográfica, se tiverem oportunidades e acesso, eles vão entrar nesses filmes. O segundo gesto político foi fazer a oficina com eles e convidá-los a reencenar cenas dos filmes, porque essas pessoas, em geral, são vistas como invasores, marginais, bandidos, muitas vezes, você mostra no processo que se elas tiverem alguma oportunidade, elas vão mostras que são cheias de talento, cheias de beleza, cheias de força. Então, você acaba no processo derrubando esse senso comum da marginalidade. Outra coisa que é muito comum com eles, é serem invisibilizados, as pessoas não enxergarem que eles existem, então, a ideia do filme é um pouco dar a elas a vitrine mais bonita de todas que é a tela grande do cinema, para dar a elas a verdadeira visibilidade, maior visibilidade e mostrar que essas pessoas podem também ser estrelas.

O que mais mexeu com você no processo de filmagens? e como isso reverbera em você hoje?

O que mais mexeu comigo foi o encontro com as pessoas, com os moradores, aquela experiência de dois meses lá dentro, me deu a chance de conhecer universos que eu, como uma pessoa de classe média e privilegiada da São Paulo, geralmente não entro, universos que não entro. Conheci um pouco dos universos de refugiados africanos, imigrantes da Bolívia e Peru, de uma comunidade LGBT super relevante, de pessoas de São Paulo que estão em extrema vulnerabilidade social, que moravam na rua e que lidavam, naquela época, com um teto provisório que podia ser perdido a qualquer momento, pessoas que já tiveram uma vida melhor e, por circunstâncias que podem acontecer com qualquer um, como uma depressão, a perda de um familiar, uma perda financeira, acabarem entrando nessa situação... esse filme me deu a oportunidade de conhecer esses universos, conhecer essas pessoas, foi quase um supletivo, um estudo muito acelerado da profunda desigualdade social do Brasil. Como cinema, me deu uma chance de trabalhar de uma forma mais pessoal, mais experimental, nessa fronteira entre documentário e ficção que sempre me fascinou muito e o Marrocos me deu a oportunidade de abrir essa seara pessoal que pretendo trilhar em outros filmes.

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